O puritanismo politicamente correcto continua de vento em popa no mundo editorial britânico e depois de Roald Dahl, Ian Fleming, Enid Blyton, Agatha Christie, chegou a vez de P. G. Wodehouse ser postumamente censurado. A editora Penguin Random House alterou passagens das suas novelas por as considerar “inaceitáveis”. Como era de prever, e está de acordo com o espírito censório deste absurdo tempo em que vivemos, a linguagem com alusões raciais foi suprimida ou extensamente modificada, pois os lápis azuis dos chamados leitores de sensibilidade não deixaram passar nenhuma dessas heresias.

O que é um leitor de sensibilidade? É uma espécie de detector de metais, de farejador de droga — sem ofensa — ou de filtro de partículas. Um livro tem várias alusões de natureza racial ou identitária? A editora entrega-o a pessoas negras e LGBTQI+ para que digam se se sentiram chocados com o que leram e, em caso afirmativo, que identifiquem o que os chocou. Como começa a ser da praxe em Inglaterra e nos Estados Unidos, a Penguin Random House recorreu aos serviços de leitores de sensibilidade, entregou-lhes os livros de Wodehouse e, em consequência do veredicto desses leitores, alterou-os. Também fez notas avisando os potenciais compradores das obras — como se eles fossem acéfalos — que os livros foram escritos há muito tempo e que alguns dos seus temas, caracterizações e personagens poderão estar “desactualizados”.

À esquerda há quem cinicamente defenda a tese de que esta forma de censura é, apenas, um artifício para melhorar a circulação dos livros e torná-los mais populares. No fundo, uma jogada de marketing livreiro. E essa tese seria de considerar se aquilo a que assistimos com a reescrita de livros não fizesse parte de um movimento muito mais amplo de censura de filmes, de ideias, de remoção de estátuas, da alteração de títulos de quadros e do puro e simples cancelamento de pessoas. Há, no Ocidente, um movimento censório que dá pelo nome de wokismo que quer corrigir as heranças do passado, incluindo as literárias.

Isto que se passa com os livros de autores já desaparecidos está certamente a bater forte nas obras de autores vivos ainda a publicar. Vimos há pouco com que argumentos uma editora norte-americana recusou a publicação de um livro de Afonso Reis Cabral e eu próprio tive um leve prenúncio disso quando publiquei o meu primeiro livro de História em Inglaterra. O revisor do texto fez pressão para que eu substituisse o termo “escravo”, como constava no texto original, por “pessoa escravizada”. Estava-se, então, em 2005, nos primórdios desta fúria revisora a que temos assistido. Se fosse agora talvez a editora britânica se recusasse a publicar o meu livro caso eu não anuísse — como, de facto, não anuí — à alteração que me propunham.

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Como romancista mas também, ou sobretudo, como historiador, olho para tudo o que se está a passar nesta área com pena pelo empobrecimento que decisões editoriais destas implicam, desde logo em termos de diversidade. A Penguin Random House fez questão de garantir que as alterações introduzidas aos livros de Wodehouse não vão “afectar a história”. No seu mural de Facebook, Eugénia Galvão Teles, a colunista do Expresso, duvidou, e bem, que na Penguin tenham percebido o que aqueles livros são. “A história não interessa para nada — escreveu — É a linguagem que torna os livros únicos”.

No Reino Unido essa linguagem e a de outros autores está a ir à viola e esse alisamento das irregularidades — chamemos-lhe assim — está a apagar as marcas do tempo, as variações e as permanências ao longo dos anos, ou seja, está a apagar a História. Qualquer um de nós, quando olha para trás, deve ter ao seu alcance todos os meios para poder perceber espessura e diversidade, para poder entender que as épocas idas eram, em vários aspectos, diferentes daquela em que vivemos. A literatura é uma óptima maneira de o perceber de uma forma muito intensa e autêntica. Quando leio Eça, por exemplo, dou-me conta de que os códigos de conduta eram diferentes dos nossos, que se usavam palavras e expressões que raramente ou nunca usamos e que se pensava de forma pouco parecida com a nossa a respeito de diversas coisas (raça, política, economia, costumes). Quando se aplainam essas diferenças, quando se substituem palavras para que o texto fique de acordo com os padrões ideológicos predominantes na nossa época, tira-se aos potenciais leitores a possibilidade de perceber como é que a burguesia portuguesa concebia a realidade e falava em termos raciais, morais ou outros, no final do século XIX.

O argumento de que as editoras estariam, com estas iniciativas, a defender a finíssima pele das almas sensíveis, facilmente impressionáveis e escandalizáveis, é um falso argumento. Sempre houve almas dessas e em certas épocas houve-as em grande profusão e evidência. Desde inícios do século XVIII, pelo menos, que a literatura de ficção ajudou a criar o (e se dirigiu ao) leitor sensível. Prestando homenagem ao culto da sensibilidade e desenvolvendo, também, a noção de benevolência — e de felicidade decorrente do seu exercício —, novelistas e poetas ajudaram a construir um tipo de pessoa que Henry MacKenzie imortalizou no romance The Man of Feeling (1771) e que era, no fundo, alguém capaz de empatizar com o sofrimento humano. Essas pessoas com o coração no sítio certo e os sentimentos à flor da pele tinham necessidade de objectivar a sua sensibilidade e virtude aliviando o sofrimento das vítimas inocentes, e viram-se, então, muitas delas insurgirem-se contra as injustiças que eram observáveis no seu tempo: as condições nas prisões, o tráfico transatlântico de escravos, a chaga do pauperismo e da fome, e por aí fora. Que me recorde nenhuma dessas pessoas se notabilizou por advogar a censura de textos alheios. Ou seja, a sua sensibilidade impelia-as à acção, à tentativa de correcção dos males do mundo, e não a repressão das palavras dos outros.

O que é novo no wokismo dos nossos dias não é a sensibilidade, mas sim a utilização pervertida dessa sensibilidade como desculpa para censurar, cortar, cancelar, alterar aquilo que os outros escrevem ou escreveram. A pretexto de encontrar aquela palavra que não ofenda ninguém, esta ânsia correctora do movimento editorial woke irá inspeccionar e varrer para fora do tempo e da nossa visão os conceitos e os termos que, na perspectiva do wokismo, devem ser proscritos. Ora a busca dessa palavra que não ofenda ninguém poderá ser um objectivo político e diplomático, mas não é, garantidamente, um objectivo literário, nem tem, nessa esfera, mérito ou valor.

Em Portugal, sentimo-nos, por enquanto, a salvo desta onda de loucura. Quando lemos as notícias que nos chegam do mundo editorial britânico, sorrimos de divertimento ou de incredulidade, ou, então, encolhemos os ombros de indiferença, mas respiramos de alívio por essa onda não ter chegado até nós. Na minha geração quase ninguém acreditará que ela possa cá chegar, mas essa convicção é ilusória porque esta não é apenas uma questão cultural é, também, em boa parte, geracional. É verdade que, entre nós, esta sofreguidão de reescrever obras literárias não penetra senão marginalmente em pessoas de um determinado nível etário — digamos que os maiores de 60 anos são geralmente estanques a essa forma de wokismo. Mas ela penetra como faca quente em manteiga nas gerações mais novas, sujeitas quotidianamente, a nível escolar e não só, a uma verdadeira catequização woke.

Aliás, o wokismo vem sendo incutido entre os jovens já há alguns anos e eu próprio passei por um episódio que o revela e que talvez venha a propósito contar aqui. De facto, um jovem revisor, cheio de zelo censório, achou por bem alterar palavras que eu havia escrito sem me dar conta de que o tinha feito. Onde eu escrevera “pretinha” — pois era assim que se dizia no século XIX, época que esse livro se passa — ele colocou “criança africana”. Felizmente, eu leio sempre os textos quando vêm da mão do revisor e dei-me conta da troca, expus a situação a quem de direito e tudo voltou à primeira forma.

Percebi, na altura, que aquele não era um simples caso isolado, mas a antecâmara de coisas a vir. E infelizmente essas coisas já cá estão, ainda que de forma subterrânea e esparsa ou pontual, como este recente artigo no Observador nos deixa ver. É verdade que ainda há âncoras muito sólidas que garantem a autenticidade e integridade da criação literária. O responsável pela Quetzal, Francisco José Viegas, por exemplo, promete que a sua editora nunca recorrerá a leitores de sensibilidade, pessoas que, na sua avaliação — com a qual concordo em absoluto —, não são senão “controladores ideológicos”, destinados a vigiar a “correcção política” dos textos, coisa que Francisco José Viegas considera “abjecta”. É igualmente verdade que há mais editores que pensam e actuam como ele, mas também há quem se posicione de forma diferente. Clara Capitão, directora editorial da Penguin Random House Portugal, por exemplo, assume que já recorreu a leitores de sensibilidade para filtrar obras de autores actuais. Fê-lo para garantir que as abordagens “eram as correctas e (que) eram inclusivas”, e porque acredita que importam não apenas os conteúdos, mas também a “forma e a linguagem escolhidas para os veicular.

Ou seja, a pulsão para alterar os textos de acordo com os ditames do politicamente correcto e a lupa dos leitores woke não é algo que fique em exclusivo nos Estados Unidos ou nas ilhas britânicas. Já podemos avistar essa tendência no nosso país e a minha convicção é que ela também se assumirá cá em força. Assim sendo, talvez os mais velhos devessem preparar-se para esse embate. E, entretanto, irem fazendo um esforço pedagógico para explicar aos mais novos a importância de preservar a autenticidade de obras literárias, sobretudo as de autores já desaparecidos, que são um produto do tempo em que foram escritas. De outro modo, essas novas gerações arriscam-se a só conseguir encontrar as versões originais e autênticas, as velhas edições destes autores censurados, em alfarrabistas, bibliotecas ou nas estantes dos avós. Sem acesso a elas ficarão com um léxico mais estreito e com as ideias mais pré-formatadas.