“Em matéria de estatuto pessoal e de aplicação de medidas de coacção, e pelo menos para nós juristas, seja qual for a nossa convicção pessoal, não há ainda delinquentes, mas visados, investigados, acusados ou pronunciados num processo-crime e nele presumidos inocentes. Há que resistir ao ímpeto de castigar antes de julgar e de antecipar qualquer julgamento, muito menos definitivo ou punitivo, antes de sujeitar toda a prova ao crivo do contraditório e à fina peneira da desejável depuração da factualidade nas várias diligências das sucessivas fases processuais, com os instrumentos garantísticos que permitem atingir uma maior verdade, qualidade e fidedignidade da justiça. É nas várias diligências e audiências processuais em que se permite e promove o direito ao advogado, o acesso aos autos, a participação informada, a efectiva audiência dos sujeitos, o adequado exame da prova pré constituída, a publicidade do processo e o exercício das mais amplas garantias de defesa do arguido que se minora o erro humano e evitam as precipitações do momento, designadamente na investigação, ou as análises superficiais do caso, sobretudo quando o mesmo ainda se encontra no inquérito ou na instrução, nas fases preliminares do processo. (…)

Não sou um especial cultor do Direito, nem mesmo um eminente prático ou comentador das Leis, da Doutrina e da Jurisprudência, mas simplesmente um advogado ocupado e preocupado com um certo automatismo de procedimentos na justiça, com o utilitarismo e o nihlismo reinantes na sociedade contemporânea, com a crescente indiferença dos profissionais do foro perante os princípios e os valores, designadamente o princípio da liberdade e o valor da dignidade. Enfim, entristeço-me com a galopante falta de compreensão e de cumprimento dos deveres decorrentes das obrigações de cidadania ou das responsabilidades funcionais e com a crescente desconsideração do supremo desígnio do indivíduo e da humanidade na superação do erro e na construção da felicidade ou, dito de outro modo, na procura individual e colectiva da liberdade, da segurança, do rigor, da fraternidade e da paz na vida quotidiana, bem como, nas nossas profissões, da procura da humana, justa e equitativa aplicação da Lei, do Direito e da Jurisprudência. Talvez por isso, e só por isso, tenha sido convidado a escrever sobre detenção e prisão preventiva, não apenas como Advogado, provavelmente a meio da vida, ou representante do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, já em fim de triénio, mas igualmente como cidadão e jurista vocacionado para os Direitos Humanos. (…)

Já o disse e escrevi antes: na nossa Lei Fundamental, e na Declaração Universal dos Direitos do Homem, prevê-se o direito à liberdade e à segurança. Se não há liberdade sem segurança menos certo não é que também não há segurança sem liberdade, sob pena de perda total da dignidade humana, cuja essência é ser livre. E a liberdade é bem ou valor hoje fortemente subvalorizado e sobretudo gravemente ameaçado. Vive-se hoje a paranóia da segurança. A todo o custo, a todo o preço, no mundo e em Portugal. Prendeu-se em Guantánamo, sem lei, sem processo, sem juiz, sem advogado; sem limite e sem limites. Em Portugal, apesar da paulatina diminuição da taxa de encarceramento preventivo, os prazos máximos de prisão preventiva são, continuam a ser, excessivos… e mesmo excessivos são levados ao limite… e quantas vezes até prorrogados. Mais do que o excesso de prisão, só estatisticamente constatado, e pessoalmente sofrido, é intolerável que qualquer cidadão possa estar privado da sua liberdade sem que saiba o porquê da sua detenção ou prisão. E isso aconteceu e acontece ainda. Sem que possa aceder ao processo ou, ao menos, contraditar os indícios que lhe não foram adequadamente dados a conhecer. Sem poder fazer mais que esperar… e desesperar, quantas vezes doze ou quinze meses, para que se dignem explicar-lhe do que está acusado, por que a indiciação, essa, pode fazer-se por remissão para folhas dos autos em segredo de justiça! Ou então espera o cidadão dois ou três anos preso preventivamente para que o absolvam… ou condenem em pena não privativa da liberdade. Ou aguarda pacientemente para ser libertado sem qualquer indemnização ou… simples pedido de desculpas. Há fortes indícios para prender, mas depois o cidadão preventivamente recluso tem de penar um longo ano, ou mais, para que lhe demonstrem quais os indícios suficientes para acusar! (…)

Tem sido irregular o percurso do nosso processo criminal e da nossa prática processual penal no que concerne às figuras da detenção e da prisão preventiva. Ora a prática judiciária – de juízes, de procuradores e de advogados – fica aquém da lei e dos princípios que a norteiam, ora a prática judiciária – de todos, sublinha-se – frustra o objectivo da lei, ora a própria lei suscita dúvidas sobre a concretização dos referidos princípios e gera práticas judiciárias distintas, ora a lei não soluciona controvérsias decorrentes de divergências doutrinárias e jurisprudenciais, consagrando uma orientação e posteriormente outra contraditória. E é neste percurso pendular entre, por um lado a lei cristalizada (e incoerente) e, por outro, a prática fluida (e inconsequente), que surge a necessidade de densificar, interpretar, aplicar e, se necessário, conferir substancialidade normativa aos princípios e orientar a doutrina e a jurisprudência para a(s) melhor(es) resposta(s). (…)

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E é na consciência da falibilidade humana, da imperfeição social e da insuficiência de meios empreendidos na promoção dessa igualdade real mas utópica que o Estado se deverá considerar em dívida face a cada um dos cidadãos que viu a sua liberdade de escolha limitada pela negligência ou pelo excesso de uma máquina inepta que o excluiu da sociedade e das suas regras mais básicas de sobrevivência e de convivência. E é porque, como dizia Aristóteles, “as acções boas e as acções más (…) são voluntárias, quando são cumpridas com conhecimento de causa” que cumpre aferir dos pressupostos educativos e da consciência individual, ética e social do arguido quando da avaliação da prática do facto criminoso que se lhe imputa e da personalidade do infractor, procedendo ao seu enquadramento, não para categorizar mas para compreender. (…)

A privação da liberdade deverá ainda ser entendida como conditio sine qua non de salvaguarda da dignidade da pessoa humana e da igualdade perante a lei [art.ºs 1º e 13º CRP e art.º 1º da DUDH], surgindo, no caso da prisão preventiva, como um mal necessário mas indispensável à correcta realização dos fins do processo, a aplicar sem perder de vista a possibilidade de se estar a lidar com uma pessoa inocente. Deverá surgir ainda como corolário dos princípios da ponderação e da justiça, temperados com o princípio da presunção de inocência [art. 32.º n.º 2 CRP, art. 11.º n.º 1 da DUDH e 48.º da CDFUE], isto é, a privação da liberdade, especialmente no caso da prisão preventiva, deverá ser aplicada apenas e só nos casos de absoluta indispensabilidade, pois embora constitua uma limitação legal da garantia da presunção de inocência, não constitui fundamento para a sua obliteração, e não se basta com qualquer juízo de culpabilidade por mais grave que seja. (…)

Portanto, e em conclusão, o princípio da presunção de inocência deverá nortear a aplicação das medidas de coacção, impedindo que se caia na tentação de as aplicar como uma antecipação da responsabilização penal – verdadeiro pecado mortal – e restringindo-as estritamente à finalidade cautelar a que se destinam. Com efeito, este princípio exige a todos que se respeitem cuidada e escrupulosamente os princípios da legalidade, da necessidade, da justiça, da adequação, da excepcionalidade, da proporcionalidade, da ponderação, da subsidiariedade e da proibição do excesso. Da conjugação de todos estes princípios extrai-se que uma medida de coacção, total ou parcialmente privativa de liberdade (com excepção do termo de identidade e residência), apenas poderá ser aplicada na estrita medida da sua real e comprovada necessidade, com intenção e natureza puramente cautelar, devendo ser escolhida de um catálogo legal taxativo com base numa ponderação reflectida sobre os bens jurídicos em conflito e com recurso a um cuidadoso juízo de adequação e proporcionalidade, o qual implica uma constante tentativa de minorar as implicações gravosas, psicológicas, económicas e sociais, decorrentes de um procedimento punitivo, face, por um lado, à gravidade do processo e suas consequências e, por outro, à possibilidade de se estar a coarctar a liberdade de um inocente. A detenção e a decisão de aplicação de medidas de coacção, sobretudo da prisão preventiva, deverão decorrer de uma atenta e cuidadosa ponderação dos direitos à liberdade e à segurança [art.º 27º, nº 1, CRP, art.º 3º da DUDH, art.º 5º da CEDH e art.º 48º do CDFUE], sob pena de burocratização e automatização de procedimentos. No que concerne à tentativa de proscrição dessa leviandade na aplicação de medidas de coacção, destaca-se a alteração introduzida pela Lei n.º 48/2007 ao n.º 1 do art. 257.º CPP, impondo como novo pressuposto material para a detenção fora de flagrante delito a existência de “fundadas razões para considerar que o visado se não apresentaria espontaneamente perante autoridade judiciária”. Com esta nova imposição, visou cessar-se uma prática, já denunciada oportunamente por Germano Marques da Silva, que consistia em proceder a arbitrárias e, muitas vezes, aparatosas detenções em público de arguidos que sempre cumpriram e continuariam a cumprir as suas obrigações processuais se simplesmente notificados para comparecer. (…)

Efectivamente, apenas o juiz, porque legitimamente investido do poder estadual e detentor das garantias de independência e isenção e da auctoritas necessária, poderá determinar a aplicação ou manutenção da privação da liberdade de um cidadão, se bem que enquadrado pela lei e condicionado ao dever de fundamentação que exige apreciação crítica e de bom senso da prova. Contudo, e porque a actividade do juiz se encontra permanentemente limitada ao disposto na lei e na Constituição, torna-se necessária a efectivação de mecanismos susceptíveis de prevenir ou de combater a arbitrariedade, quaisquer abusos de poder ou a simples irreflexão no exercício dos poderes jurisdicionais. Daí que o dever jurídicoconstitucional de fundamentação que impende sobre o juiz, seja uma verdadeira garantia integrante do próprio conceito de Estado de direito democrático, cuja violação importa a nulidade da decisão ou da sentença, nos termos dos art.s 97º nº 5 e 379.º n.º1 al. a) ambos do CPP. A especificação dos motivos de facto e de direito da decisão não se basta com um dictat, exige explicitação, senso e discussão das provas e dos argumentos. (…)

Sem dever sê-lo, a justiça é, nos tempos de hoje, um conceito que se parece querer muito próximo da reacção instintiva, primária e vingativa, se bem que por via de uma ordem aparentemente racional ou de uma rápida sanção, mera punição, dictat quantas vezes só ritual, virtual e mediático, (aparentemente) imposto pela lei, (forçadamente) ditado pela sentença ou (levianamente) soprado pela nova (in)justocracia cheia de irresponsabilidade, acobertada pelo segredo, desprovida de critérios e eivada de superficialidade. Dura lex, sed lex. Tendem a privilegiar-se, num mundo em crise, e na máquina judiciária, as componentes encantatória, manipulatória, persecutória, coerciva e punitiva da justiça. A sede de justiça levada ao seu extremo confunde-se com a sentida necessidade de vingança e com a obsessão cega pelo castigo como solução para todos os problemas. Summum ius, summa injuria.”

*(CEJ, As alterações de 2010 ao Código Penal e ao Código de Processo Penal, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, pp. 193 a 207).