Se há coisa que abunda nas ciências sociais e, por tabela, na comunicação social, a qual recorre às primeiras a fim de dar algum semblante de credibilidade aos noticiários, é a infinita multiplicidade de «questões» que as ditas ciências sociais não cessam de criar, desenvolver e, frequentemente, abandonar dada a vastidão do «social»… Há, contudo, uma variedade de «questões» recentemente cunhadas pelos nossos agentes governamentais de maneira a empurrar com a barriga o número crescente de problemas com que os actuais governos são confrontados pela dura realidade e sem soluções à vista.
Um caso recente foi a falência do funcionamento do Sistema Nacional de Saúde (SNS) perante a acumulação de problemas inéditos provocados de início pela pandemia do Covid-19, que se prolongaram pelos chamados «lares para idosos», provocando um aumento tal dos óbitos anuais que o Censo de 2021 já detectou a diminuição da população tanto pelo lado da mortalidade (em alta) como do nascimento (em baixa).
Após dois anos e meio da pandemia, que continua a provocar a sobre-ocupação dos Cuidados Intensivos e dos Internamentos hospitalares para não falar dos milhares de óbitos que continuam a acumular-se, a falta de urgências obstétricas e de um número crescente de especialidades levou a ministra da Saúde, habitualmente tão decidida, a optar desta vez por confessar que o problema do SNS não era, afinal, uma mera «questão conjuntural», dependente de factores momentâneos, mas sim algo de bem mais grave e demorado, a saber, uma «questão estrutural», signifique esta o que significar, pois a ministra não disse de que crise exactamente se tratava.
Poucos dias depois, o desencadeamento dos incêndios florestais estão a multiplicar-se sob a pressão de temperaturas acima dos 40º, de início com epicentro no distrito de Leiria mas que já vão de Trás-os-Montes ao Algarve, de tal modo que perante esse inferno anual, o primeiro-ministro, que já tinha presidido ao mortífero caos de 2017, descobriu finalmente que também os incêndios florestais, cujo «record» europeu é pertença de Portugal há anos, não são meros fenómenos conjunturais mas sim outra devastadora «questão estrutural». Nada leva a crer, porém, que o actual governo tenha vontade e competência para resolver de vez tal «questão», apesar das numerosas intervenções dos cientistas e técnicos que a conhecem.
Bem vistas as coisas, o facto é que a esmagadora maioria dos enormes problemas que o país vem sofrendo desde o tempo em que o PS teve o poder eleitoral – desde Guterres a António Costa, passando pela negra sombra de Sócrates – deixaram de ser «conjunturais», como aqueles que Passos Coelho resolveu o melhor que pôde de 2010 a 2014, e se transformarem, todos eles, em «questões estruturais», desde o crescimento da dívida à falta de desenvolvimento.
A saúde e os incêndios são duas dessas «questões» mas há muitas mais, algumas delas interrelacionadas entre si, começando pelas que dependem de uma reforma constitucional que reaproximasse os eleitores reais de um sistema eleitoral efectivamente proporcional. Outros são a educação, desde as creches infantis até ao chamado ensino superior; a administração pública, que se tornou entretanto numa sinecura partidária. Enfim, uma radical restruturação do sistema produtivo, já que um país minimamente desenvolvido não pode nem deve depender mais do turismo do que uma pequena parte do PIB, como sucede em países como a França e a Inglaterra…
Em contrapartida, os incêndios, além do seu trágico custo humano e social, são uma demonstração da falência das nossas estruturas. Um exemplo aparentemente menor, mas que não deixa de contribuir para a «questão estrutural» dos incêndios, são os milhares de furos de água mandados abrir pelos proprietários dos terrenos. Ora, há duas décadas, alguém teve a boa ideia de mandar registar esses poços que continuam a alterar a economia da água e, por tabela, dos incêndios.
Como proprietário de um desses poços, entrei em contacto com a capital do distrito a fim de «meter os papéis» e pagar o respectivo «imposto». Os meses passaram e telefonei para a funcionária que tratava do meu «furo», a qual me respondeu: «Não se preocupe: eles desistiram…»! Não fizeram mais nem menos do que os governos sucessivos do Duque de Ávila (primeiro-ministro na segunda metade do séc. XIX), o qual havia lançado o cadastro da propriedade rural a norte do Tejo mas tal nunca foi feito a sul: até hoje!
Algo equivalente se pode dizer da estrutura criada após o 25 de Abril, segundo a qual os terrenos baldios foram divididos entre os trabalhadores rurais com o objectivo de explorarem pequenas parcelas. Porém, estas estão hoje cobertas de pinheiros e eucaliptos, na sua maioria meio abandonados e entregues ao risco dos incêndios. O caso português é único e a impotência governamental fez o resto! É mais uma «questão estrutural» criada por governos incapazes de reformar medidas manifestamente falhadas.