Caso 1. Desde que o governo tomou posse, o parlamento enviou ao ministério da Educação 2218 perguntas e requerimentos, aos quais o governo tem obrigatoriedade de responder. Destes, 1357 aguardam resposta – mais de metade (61%). E, entre 861 respostas enviadas ao parlamento, apenas 19 (2.2%) chegaram dentro do prazo regimental (um mês). Ora, esta fonte de informação é fundamental para a avaliação do ministro da Educação por parte de deputados, de jornalistas e de vários agentes educativos – é que, quando recepcionadas pelo parlamento, as respostas são colocadas em acesso público no site. Não prestar essa informação é, pois, impedir o parlamento (e, através dos deputados, a população) de fiscalizar a acção do governo.

Caso 2. É grave o que se sabe sobre a CGD e os SMS trocados entre Mário Centeno e António Domingues. Está documentado que o governo legislou à medida de interesses privados de Domingues, sob consultoria do seu escritório de advogados, para o isentar do escrutínio dos gestores públicos. Primeiro, Centeno até confirmou essa intenção, depois desmentiu-a e, por fim, foi ele próprio desmentido pelos registos já conhecidos das negociações com Domingues. Falta apurar o final da história e, claro, o grau das respectivas responsabilidades políticas dos principais intervenientes – Mário Centeno e António Costa. E, pelos vistos, continuará a faltar: o acesso à informação que esclareceria a situação foi travado pelos partidos à esquerda, na comissão de inquérito, contrariando o regimento da Assembleia da República.

Não está em causa gostar-se ou não dos ministros da Educação e das Finanças. É indispensável sair das trincheiras das preferências partidárias e fixar o que estes dois casos exibem: a disponibilidade de PS-PCP-BE para fragilizar regras institucionais do regime, de modo a obstruir o escrutínio parlamentar e salvar o governo. Por razões de conveniência política e em nome dos seus interesses partidários, a esquerda parlamentar está a ser cúmplice de um atropelo institucional que deixará mazelas no regime. Como a propósito escreveu no domingo Vicente Jorge Silva, no Público, “a dissimulação, a duplicidade dos comportamentos e o abuso da credulidade pública, a falta de clareza e rigor ético formam uma massa tóxica que corrói a confiança entre políticos e cidadãos”. Não haja ilusões: não há acções sem reacções.

Dir-me-ão que nada disto é novo na política portuguesa. Business as usual. Sim, em parte é verdade. Já se ganhou o infeliz hábito de engolir a seco a impunidade da nossa classe política. Onde hoje estão governantes do PS enrolados em mentiras e ocultações já estiveram enleados outros ministros de PSD e CDS. O exercício do poder suja as mãos e nenhum destes partidos tem as mãos limpas.

Mas há aqui duas novidades que importa não perder de vista. Primeiro, desta vez, BE e PCP também sujaram as mãos. Após anos de fora e, na oposição, a ser implacáveis com o governo na defesa do escrutínio parlamentar, PCP e BE perderam a autoridade moral que reclamavam para si ao defenderem Mário Centeno e contribuírem para o encobrimento das suas mentiras. Na promiscuidade da nossa cena política e nesse atropelo institucional, já nada distingue PCP-BE de PS-PSD-CDS. Segundo, esta completa ausência de autoridade moral por entre todo o espectro parlamentar legitimou uma indiferença generalizada face às regras institucionais. Se todos têm as mãos sujas, ninguém consegue apontar o dedo a ninguém. E, por isso, a força da actual maioria parlamentar impõe-se sobre o próprio regimento da Assembleia da República, impedindo a fiscalização do governo.

O caso Centeno até pode dar em nada. Mas nada ficará na mesma. Sim, obstruir o escrutínio parlamentar pode salvar o governo. Mas, no processo, matar-se-á também a legitimidade das regras que enquadram o combate político. Nos EUA, por exemplo, estão todos de olho nas instituições da democracia americana, confiando nos seus freios e contrapesos para equilibrar o desequilíbrio de Trump. Por cá, onde não há Trump mas há geringonça, ninguém está a olhar ou a proteger as instituições do regime. O erro pode vir a ser fatal: daqui a uns anos, veremos o que delas sobrará.

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