Trocadilho fácil demais, este, mas de certa forma inevitável. Penso que Harper Lee não levaria a mal, mas sabendo o que sei sobre André Fernandes Jorge (1945-2016), fundador da editora Livros Cotovia, pessoa avessa ao cliché e a todo e qualquer lugar comum, imagino que facilmente reviraria os olhos perante semelhante vulgaridade. Espero que me perdoe.

Escrever hoje que mataram a Cotovia é, infelizmente, muito mais que um título-trocadilho. É um facto. Triste e desconsolador, mas um facto incontornável. A Cotovia deixou de existir e não editará nem mais um livro. Podemos ainda comprar os que restam do espólio e até esperar pelas devoluções das lojas, para ver se conseguimos os volumes que gostaríamos de guardar para sempre, mas não mais do que isto.

Na verdade, em vez de recorrer a Harper Lee e à sua Maycomb sulista, imaginária, cujas linhas dificilmente cruzam as do universo da editora portuguesa que agora fechou as suas portas, gostava de me ter socorrido de Clarice Lispector, ainda para mais uma autora editada pela Cotovia, para plagiar o título do seu biógrafo “Porquê este mundo”. Assentaria como uma luva se lhe acrescentássemos o mesmo ponto de inquietação que atravessava a própria Clarice. Porquê este mundo? Eis a muda e intensa pergunta que atormentava a autora na sua adolescência, como escreveu Benjamin Moser, o seu jovem e talentoso biógrafo.

‘Porquê este mundo, porquê isto, porquê agora?’ poderia ser a tripla interrogação ao longo deste ano de pandemia. Nem todos nos questionamos desta maneira, é certo, mas a perplexidade atinge-nos por igual e, nesta lógica, atrevo-me a dizer, provavelmente sem grande margem de erro, que atualmente nos revemos no todo ou em parte da trilogia de dúvidas existenciais.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Agora que a Cotovia também decretou o seu próprio fim, e este encerramento é mais um a somar a todos os fechos de portas a que assistimos nos últimos meses, é impossível não ficarmos tristes. Baixamos os olhos perante o drama alheio, sentimo-nos solidários com os que ficam sem emprego, os que perdem familiares e amigos, os que têm entes queridos nos hospitais, seja porque estão lá internados ou porque lá trabalham, sobrecarregados e sem descanso, ficamos sem jeito diante dos que gritam e nunca somos indiferentes quando partilham as suas aflições, mas no momento em que mais uma grande comunidade fica, toda ela, mais pobre, não podemos poupar palavras.

Falo agora da comunidade alargada, internacional, de leitores para sempre privados dos livros da Cotovia, cujo catálogo de obras e autores refletia critérios de seleção afinadíssimos. Não podemos dizer que a Cotovia editou todos os bons livros que existem no mercado, mas podemos dizer que todos os livros que editou eram bons. Fundada em 1988, a Cotovia ultrapassou os 700 títulos, de 350 autores, “todos eles relevantes, para um público leitor que sabe o que quer”, como podemos ler no site. Diria mais: entre eles estão muitos dos nossos mestres de leitura.

Não sou crítica literária nem o meu critério de leitura serve a ninguém senão a mim própria, mas enquanto compradora e leitora, sofro terrivelmente com esta perda.

Harold Bloom, ensaísta e crítico literário norte-americano, escreveu longamente sobre a importância da leitura e assume que ler é, para ele, o mais curativo dos prazeres. Dizer que os livros nos transportam para realidades de alteridade, para mundos fabulosos e fabulosamente criativos é outro chavão insuportável, mas é também uma tremenda e incontornável verdade.

Bloom, autor de mais de 30 livros, entre eles “Génio”, sobre os 100 autores mais criativos da história da literatura, e “How to Read and Why”, diz que o único conselho que podemos dar a quem gosta de ler é … não dar conselho nenhum. Deixar os outros livres para lerem o que querem, o que gostam, o que lhes apetece. Deixar os outros livres, permanecendo nós próprios igualmente livres. E volto a Clarice Lispector, acusada por Elizabeth Bishop, sua vizinha no Rio de Janeiro, de ser a “escritora mais não literária” que já tinha lido. Volto a esta frase porque nos ajuda a nós, meros leitores apaixonados, sem quaisquer pretensões literárias, a sentirmo-nos em casa em qualquer biblioteca, em todas as livrarias e nas conversas mais ou menos intelectuais sobre livros e autores.

Recordo Sophia, no dia em que chegaram com extrema cerimónia para saber como arrumava ela os livros nas suas estantes. Grave e solene, como só ela sabia ser perante perguntas arriscadas como esta, em que o curioso espera uma resposta elevada e porventura genial, guardou um breve silêncio e depois, apontando em duas direções opostas, disse com leveza e despreocupação:

Aqui arrumo os bons e ali os maus.

Nunca mais esqueci a métrica e sigo o método. Tento não acumular os maus e guardo os bons em estantes que têm como único critério de arrumação o meu gosto pessoal. Noto, neste meu luto editorial, que em todas as prateleiras há livros da Cotovia, alguns lidos e relidos, todos eles sublinhados a lápis e, como sempre faço, com citações e notas escritas nas páginas em branco que existem no fim de cada livro, imediatamente antes da contracapa.

E é nesta condição de leitora inconsolável que escrevo sobre o fim da Cotovia, por ser também para mim uma perda irreparável. Mais uma, neste fatídico ano de 2020, em que todos os dias nos chegam notícias de mortes e perdas.

Agradeço aos irmãos Fernandes Jorge, mas também à Fernanda Mira Barros, e às suas equipas, terem inaugurado e mantido de pé até ao fim deste ano (mais do que um ano, 2020 é um marco na História que deixa marcas indeléveis na Humanidade) uma editora que raramente teve grandes lucros, mas com a qual todos lucrámos. Uma editora que publicou verdadeiros tesouros sem gerar riqueza para si própria, mas nos deixou a todos infinitamente mais ricos. Uma marca que agrupou chancelas criativas e inovadoras que nos permitiram conhecer os “novos” da literatura portuguesa, mas também nos deixaram explorar os grandes clássicos e ler demoradamente alguns dos maiores e melhores autores de sempre.

Termino, fazendo minhas as palavras de Eduardo Sterzi, ele, sim, escritor e crítico brasileiro, que resume com sabedoria e propriedade o que uma leitora não especializada como eu teria algum pudor em dizer: “O catálogo da Cotovia coloca-a entre as melhores editoras do mundo – pelo menos do meu mundo.”