Numa entrevista recente à RR o padre João Seabra dizia que hoje encaramos a liberdade como ausência de vínculos. É livre aquele que não está preso: não está preso ao amor que jurou no casamento, aos filhos que trouxe ao mundo. Não está preso a um emprego ou a um chefe. Não está preso a um país ou a uma cultura.

A verdadeira liberdade, diz o sacerdote, é o encontro com o próprio destino. Um encontro verdadeiro e responsável com a vida como ela é, o que implica reconhecer a verdade e praticar o bem. Serei tão mais livre quanto melhor conhecer a Verdade.

Procurar a verdade costumava ser algo tomado com muita seriedade. Hoje a mentalidade dominante parece ser a de aceitar de forma acrítica aquilo que nos é proposto (ou ditado) pelas tendências e modas. A verdade deixou de ser simplesmente o que é e passou a ser aquilo que eu quero que seja, de resto, uma atitude muito mais confortável.

Do outro lado do atlântico há um pensador mediático, filósofo e professor em Harvard, que se chama Michael Sandel. Sandel tem uma chave de leitura muito bem conseguida sobre este momento em que vivemos. Diz o autor que perdemos a arte do debate democrático e para ilustrar esta posição costuma usar um exemplo pouco consensual: o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que não podia vir mais a propósito dada a recente aprovação pelo parlamento alemão desta ideia.

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Sandel apoia a sua tese na teoria aristotélica de justiça que, de forma sumária, nos diz que justiça é dar a cada um aquilo que lhe é devido e aquilo que lhe é devido não está relacionado com equidade ou qualquer outro critério arbitrário, mas com a natureza intrínseca das coisas. O exemplo de Aristóteles é que se eu tiver flautas para distribuir devo dar as melhores não a quem gosta mais de flautas ou ao mais pobre, mas àqueles que sabem tocar melhor. O motivo é simples: a flauta foi feita para ser bem tocada. É esse o seu telos – finalidade.

Sandel sugere então que, para restaurar a arte perdida do debate democrático, apliquemos este raciocínio às questões políticas mais polémicas em vez de nos escondermos por detrás de uma pretensa neutralidade liberal que não é mais que uma ilusão. Aprovar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, ao contrário do que se quer fazer acreditar, não é uma posição neutra, na medida em que a ideia de neutralidade política remete para uma posição em que o agente abdica das suas convicções morais e religiosas porque existem cidadãos que não concordam com aquelas posições. Neste debate (tal como em 90% dos debates) isso não é possível.

Para resolver esta questão temos necessariamente de trazer para o debate aquilo que são as nossas posições pessoais e fazemo-lo sempre, mesmo quando achamos que estamos a ser absolutamente neutros. A abordagem simplista seria a de considerar que se dispensam as convicções pessoais, na medida em que, independentemente de concordar ou não, as pessoas devem ter a liberdade de escolher os seus parceiros de matrimónio livremente. Seria, então, uma discriminação negativa permitir que casais heterossexuais se casem e impedir pares homossexuais de o fazerem. É aqui que termina o debate hoje. E foi aqui que terminou apenas cinco (!) dias depois de Merkel relaxar a posição do seu partido. Merkel até tem a sua opinião pessoal, mas tem de a guardar para si para não ofender, pensou certamente.

Sandel propõe levar a questão um pouco mais longe. Como Aristóteles, Sandel acredita que para compreender a pertinência de uma instituição social como o casamento temos de argumentar sobre qual a sua finalidade e quais as virtudes que honra e recompensa, i. e., qual a sua relevância para a sociedade em que vivemos. São estas as questões que deviam ser respondidas num debate sério e tolerante em vez de nos ficarmos pelas intimidações: “ou são a favor ou estão a discriminar. “

Não se trata de discriminar pessoas, trata-se de definir o que é verdadeiramente o casamento e por que é que deve ser defendido pelo Estado. No caso do casamento heterossexual a resposta é intuitiva. Não só faz parte da própria natureza do casamento ser entre homem e mulher e ter como finalidade a procriação, como é desejável que exista o casamento para que a própria sociedade seja sustentável e, no limite, para que o género humano seja preservado. No caso do casamento entre pessoas do mesmo sexo não sei responder.

A liberdade, como lembra o Pe. João Seabra, é indissociável da verdade e esta exige mais do que meros lugares-comuns como dizer que todos somos iguais e devemos ter os mesmos direitos. Dar mais profundidade aos nossos debates políticos pode ser um primeiro passo neste sentido.

Economista