O BE decidiu apresentar um nova velha proposta: a legalização total da canábis.

Para o BE, esta proposta tem um único fundamento: conseguir mais um ou outro voto. E fica assim justificada a proposta, que há-de parecer muito bem a todos quantos passam pela maçada de ter de comprar droga de forma ilegal e há-de parecer mais ou menos indiferente a todos quantos hipnotizados pelos mantras relativistas da nossa cultura actual, olham para a política e para o bem comum com indiferença patológica: “Façam o que quiserem, desde que não me chateiem.” Mal sabem eles que mais cedo do que tarde o espaço de manobra que hoje damos aos engenheiros sociais se virará contra nós.

Para quem a política não é um mero jogo eleitoral e a encara como um dos maiores serviços que um homem pode prestar à sua comunidade, a questão é séria e exige uma análise mais cuidada.

Em primeiro lugar, compreender o contexto histórico do actual statu quo: durante o Estado Novo, havia certamente muitos problemas em Portugal, mas não havia um problema relacionado com a dependência de drogas, que eram proibidas. No entanto, como acontecia com uma série de outros produtos, no Ultramar eram toleradas. O desorganizado processo de descolonização, a vinda de mais de um milhão de retornados e a miséria, por um lado, e o oportunismo das redes de tráfico que viram em Portugal um “mercado emergente” num contexto social aberto a algum experimentalismo, por outro, acabaram por criar um clima favorável à disseminação das drogas em Portugal.

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Ao mesmo tempo, Portugal, acompanhava as práticas internacionais neste domínio e, em 1993, o Governo de Cavaco Silva aprovaria a “Lei de combate à droga”, transpondo para a nossa legislação o estabelecido na Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988, assinada por Portugal. Naquela altura, já a Holanda tinha um regime permissivo que era visto com desconfiança pelos pares internacionais, em particular, pelos países nórdicos que, tendo tido experiência com modelos similares, os foram progressivamente abandonando.

Foi uma lei que durou pouco tempo. Um grave crise de dependência de drogas, em particular de heroína, nos anos 90, fez com que o Governo de Guterres desenvolvesse a “Estratégia nacional de luta contra a droga”, que por sua vez deu origem à controversa Lei 30/2000 de 29 de Novembro, que mantinha a lei de 1993 na medida necessária para honrar os nossos compromissos internacionais, mas optava por uma abordagem que foi absolutamente revolucionária e muito arriscada à época: descriminalizava (sem despenalizar) o consumo de droga. De qualquer droga, desde um charro à cocaína ou heroína. Foi um risco enorme, altamente experimental e único no mundo. Nenhum país do mundo, em 2000, tinha uma lei tão permissiva como a nossa.

O risco foi grande, o debate foi aceso, mas a lei acabou aprovada pela esquerda. Chegados aqui, é necessário admitir que houve melhorias consideráveis. Só não é claro que se devam à permissividade da lei, mas antes à nova lógica de combate ao consumo de droga: os dependentes de drogas deixavam de ser considerados criminosos, para passarem a ser considerados doentes que necessitam de apoio médico e social. Foi feita ainda uma aposta na prevenção e no combate à disseminação de doenças, como a SIDA, que tinham uma enorme prevalência entre os consumidores destas substâncias.

Estou convencido que a abordagem funcionou por via da dignificação das pessoas e da prevenção e é necessário dar o devido mérito ao Dr. João Goulão que, desde essa altura, lidera este esforço de combate ao flagelo social que é o consumo de droga. No entanto, como é nossa prática, resolvido o problema mais grave, abandonou-se o esforço preventivo e temos hoje o mesmo Dr. João Goulão a pedir mais autonomia e mais recursos nesta frente de batalha. Não será mais por aqui que se combate o problema?

Naturalmente, não é este problema que o BE quer resolver. É sempre mais fácil declarar que um problema não é um problema, do que ir às raízes e tentar resolvê-lo. Os dados mais recentes indicam que temos uma elevadíssima penetração de canábis, especialmente entre os jovens, incluindo em idade escolar. Ao mesmo tempo, sabe-se que a canábis é cada vez mais perigosa, dado conter cada vez maior concentração da substância psicotrópica THC, responsável pelos efeitos mais nefastos desta droga. Dado curioso: o país onde há menor consumo de canábis na Europa é a Hungria, um dos países que tem a legislação mais restritiva em matéria de consumo de droga (Portugal é o segundo país da UE onde mais se consome). Mas afinal o “proibicionismo” que (supostamente) não resulta e que está na base de toda a argumentação da lei das ganzas do BE, afinal resulta? São as conclusões a que se chega quando se compara a ideologia com a realidade.

É neste contexto que o BE surge e se quer afirmar eleitoralmente como uma força política legalize. Sem qualquer fundamento científico, político ou social, a não ser a vontade de ser moderno e de captar eleitorado, propõe em 2009 a legalização absoluta da droga; depois, em 2013, propõe legalizar e criar “clubes de droga”; depois, em 2015, a mesma coisa. Em 2018 foram mais arrojados e encontraram um “cavalo de Tróia” para abrirem as portas à legalização total: a legalização da canábis medicinal. Uma lei meramente folclórica, visto que já tinha sido aprovado um medicamento derivado da canábis àquela data. De resto, os medicamentos são aprovados, supostamente, pelo Ministério da Saúde e pelo Infarmed, com base em critérios científicos. Não por deputados, com base em interesses políticos. [Repararam que todas as propostas foram em anos de eleições? Coincidência, certamente.]

Se dúvidas existissem sobre as reais intenções do BE, bastava ver que, ainda em 2018, nem a lei da canábis medicinal estava regulamentada, já estava a entrar nova proposta do BE para a legalização da canábis para “uso pessoal”. Outra vez. À excepção da legalização folclórica da canábis medicinal, obviamente todas as outras propostas vanguardistas e irresponsáveis do BE foram rejeitadas pelo PSD, CDS, PCD e, por vezes, também pelo PS ou parte dele. Quando nem o PS, com o pouco filtro que lhe é conhecido, embarca nestas aventuras é porque, definitivamente, não existe defesa possível.

Os especialistas falam, os partidos e o povo rejeitam, a ciência evolui, mas a tudo isso é alheio o BE que gosta de contornar as lógicas democráticas ao utilizar a velha estratégia de tentar vencer pelo cansaço para repetir, ano após ano, exactamente as mesmas propostas, com o único fim oportunista de agradar aos seus nichos eleitorais. Já nós, ficamos mais ou menos indiferentes e preferimos indignar-nos com outros assuntos. Imagine-se o escândalo que seria o CDS ou o PSD apresentarem todos os anos propostas para criminalizar novamente o aborto? Como é o BE, não faz mal.

Não vale a pena voltar a repetir aquilo que temos repetido nas últimas seis propostas de legalização apresentadas pelo BE: que é um mito que canábis seja inócua ou uma droga leve (ou aqui, aqui e aqui por exemplo) – pelo contrário, é cada vez mais perigoso; que, além disso, é sempre a porta de entrada para drogas ainda mais perigosas; que é absurdo comparar a canábis ao álcool ou ao tabaco para justificar a sua legalização, visto que tanto o tabaco como o álcool podem ser utilizados sem se perder a consciência, que, por sua vez, é a finalidade primária do consumo de canábis (e este raciocínio tanto serve para justificar a legalização da erva como a criminalização do álcool, do tabaco ou do café); que é um mito dizer que legalizar vai permitir controlar a quantidade de THC presente; ou que são os mais pobres os que sofrerão mais com a aprovação desta lei. Tudo isto já foi explicado por especialistas reiteradas vezes e pelos restantes partidos nos debates das propostas anteriores do BE. E o BE já sabe tudo isto. Mas voltarão a invocar estes sofismas porque não é a razoabilidade das medidas ou a promoção do bem comum que move este partido progressista e pós-racional. Prova disto mesmo é o facto de o BE apresentar estas propostas sempre com a desculpa de que o “a proibição não está a resultar no combate ao consumo de droga” e ter votado favoravelmente uma resolução a recomendar ao Governo a adopção de medidas para a saúde mental que diz o seguinte:

«25 –No âmbito da juventude e educação:

(…)

Promova  estratégias  para  combater  e  reverter  o  crescente  consumo  de  substâncias  ilícitas  ou neurologicamente  nocivas,  como  canábis, ecstasy e  álcool,  nas  faixas  etárias  entre  os  13  e  os  18  anos estabelecendo conteúdos, na componente curricular de promoção de saúde mental, sobre o impacto nocivo no desenvolvimento cerebral que decorre da exposição a estas substâncias;»

Tudo isto é suficiente para mostrar a incoerência do BE, mas o problema das drogas é mais profundo ainda. É preciso parar para reflectir seriamente e compreender que, mais grave que todas estas questões, é a perda de liberdade associada ao consumo destas substâncias. Uma pessoa que consome droga não é alguém que está a usar da sua autonomia individual para fazer uma escolha que só o afecta a si… Pelo contrário, é alguém que abdica voluntariamente da sua capacidade de decisão e que já não é capaz de viver no mundo real, concreto, que por qualquer razão se tornou demasiado doloroso para ser suportado. É o próprio Hayek que afirma que não temos a liberdade de abdicar de ser livres. Nenhum liberal no seu perfeito juízo seria favorável a um regime autoritário ou à escravatura ainda que essa fosse, porventura, a vontade individual das pessoas. O mesmo raciocínio deve ser aplicado ao consumo de droga, que não só destrói a liberdade individual, como amizades, lares, famílias, pessoas, sociedades.

Sejamos claros, a liberalização total das drogas só interessa a três grupos de pessoas: (i) aos consumidores que querem aceder mais facilmente à droga; (ii) aos investidores (às vezes ligados ao PS ou ao PSD, é certo) que acreditam que a legalização é mais uma oportunidade de negócio e, claro, (iii) aos partidos que beneficiam desses votos.

Mas não vale tudo.

O papel dos partidos deve ser o de contribuírem para construir um país onde se consegue viver sem ter de se estar sob o efeito de alucinogénios, não o de abrir caminho para uma sociedade alienada, escrava do seu próprio sofrimento, por muito conveniente que isso possa parecer eleitoralmente.