Caro leitor,

Pode não ter dado conta, dada a forma matreira e dissimulada como o Governo, por proposta do mestre do desastre Ministro Cabrita, aprovou, no passado dia 14 de Abril, a Resolução de Conselho de Ministros (“RCM”) com as orientações de política legislativa para a reestruturação do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, passando este a ser apelidado de, pasme-se, Serviço de Estrangeiros e Asilo (“SEA”).

A saga do desnorte do Governo em matéria de migrações continua. Os que não acreditavam que o Ministro Cabrita seria capaz de piorar as coisas enganaram-se. Aqui ficam os novos episódios desta novela. Ironia é o guionista Cabrita achar que é autor de uma epopeia e não ver que, na verdade, ele é o principal ator de uma peça cómico-trágica ao melhor estilo grego. Melhor seria que o Primeiro-Ministro lhe pusesse fim ao mandato. Mas,enquanto tal não acontece, cá vamos nós assistindo a este desfiar de tontarias, das quais a RCM 43/2021 é só a última novidade.

A RCM 43/2021 ou, como gosto de lhe chamar, o monstro de três cabeças, tem que ser dissecada para se conseguir perceber o tamanho da asneira. Faço-o em três actos:

1 Primeiro Acto. A necessidade do reforço da segurança versus a substituição de fronteiras por asilo

A resolução começa por sublinhar a importância da segurança como “pilar fundamental do Estado de Direito democrático”, mas retira a referência às fronteiras do rebranding, substituindo por asilo. Num momento em que as fronteiras de todos os países de Schengen estão a ser reforçadas, Portugal decide colocar a tónica na questão do asilo, que tem um peso absolutamente residual na conjuntura das migrações no nosso país.

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Os últimos dados estatísticos publicados pelo SEF mostram-nos isso. Entre 2018 e 2019, Portugal reinstalou 1.010 refugiados sob proteção do ACNUR. Em 2019, foram reinstalados e transferidos para Portugal 376 refugiados.

Será que a mudança de nome é resultado da presidência da União Europeia (“UE”) e do novo pacto na política de migração e asilo? Não sabemos. Apesar de o novo pacto ser um dos temas mais relevantes desta presidência, e da actual conjuntura europeia, a resolução é omissa quanto a este assunto. Aliás, não há em todo o diploma nada que indique ou que faça sequer suspeitar um possível reforço da política de asilo em Portugal. Para ser honesta, há uma menção honrosa na alteração do nome para SEA e no momento em que no preâmbulo é referido que “cumpre reforçar a dimensão de intervenção humanista”, uma vez que Portugal adotou uma política ativa de considerar positiva a vinda de imigrantes para o país.

Para além de tudo isto, nesta, como em todas as boas peças trágico-cómicas, a trama adensa-se e complica-se. Então não é que o Conselho de Ministros decide neste diploma misturar conceitos com imigrante e asilado?

Será fácil de perceber para todos que um imigrante não é um refugiado. Mas, porque há sempre quem tenha dúvidas, tanto assim é, que existem dois diplomas distintos que regulam o regime de regularização de estrangeiros (Lei 23/2007, de 4 de Julho) e o regime dos estatutos de requerente de asilo, de refugiado e de proteção subsidiária (Lei n.º 26/2014, de 5 de Maio).

A política de asilo é complexa. Desde 2015 que os EM revêem a forma mais equitativa sobre como contribuir para reduzir o caos humanitário que envolve os pedidos asilo, do acolhimento e de regresso.

Só para que conste, o cálculo da capacidade de acolhimento por cada Estado-membro é definida com base no número de estrangeiros que podem beneficiar de asilo em Portugal (e em qualquer EM) e tem por base uma chave de repartição calculada com base com os dados mais recentes do Eurostat: (a) a dimensão da população (ponderação de 50 %); (b) o PIB total (ponderação de 50 %). Enfim, acho que fica claro que, como se diz na gíria popular, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.

É um facto que existe um novo pacto sobre asilo e migração. O que não era necessário, era o Governo querer ser moderninho e mudar o nome a um organismo público vital na nossa segurança e soberania e de, no processo, esquecer-se do fundamental, decidir como quer tratar a matéria de asilo.

2 Segundo Acto. O princípio da separação de poderes versus a gestão de bases de dados policiais pelo SEA

Com a extinção do SEF, foi feita a dispersão dos seus poderes pela GNR, PSP, PJ e IRN. Se mais houvesse mais teria sido espalhado. O Ministro Cabrita, das pastas que tem não percebe muito, mas na arte da sobrevivência é mestre, sabe que em tempo de crise o melhor é dividir para poder reinar.

É no meio desta confusão de distribuição de poderes e responsabilidades que nasce o SEA.

O pobre coitado do SEA nasce, assim, com um perfil bastante dúbio e, pior ainda, nasce como uma entidade mal-amada. Ninguém pediu a sua criação, ninguém a quer especialmente e todos duvidam que venha a ser alguma coisa para oferecer.

O SEA fica com competências na concretização de políticas em matéria migratória (competência esta que pertence ao poder Executivo devendo ser desempenhada pelo Governo), por outro lado, fica como responsável pela gestão de bases de dados.

Da base de dados (!), o acesso a estas bases de dados é normalmente restrito às forças policiais. Relembro que o defunto SEF era uma força policial e que o SEA não é uma força policial ainda que com aparentes pretensões.

A gravidade, neste caso, é que este acesso às bases de dados viola o princípio da separação de poderes. Temos o poder executivo a aceder à informação reservada ao poder judicial. Por outro lado, a resolução refere também que a SEA representará Portugal nas agências europeias de fronteiras e asilo quando apenas forças policiais o podem fazer.

Mais ainda, a vigilância das fronteiras fica dividida entre a GNR (fronteira marítima e terrestre) e a PSP (aeroportuárias e cruzeiros).

Surge a pergunta, como será definida esta representação junto das agências europeias? Para uma resolução que extingue um serviço, distribui jogo por 3 forças de segurança e um instituto público, a fundamentação é parca e nascem mais dúvidas do que os problemas que se resolvem. De resto, bem ao estilo de governação Cabrita, no meio do fumo e jogos de espelhos.

O preâmbulo desta epifania para a política migratória em Portugal reforça a intenção da promoção de um país seguro, livre e democrático. Contudo, esquecendo o respeito pelo elementar princípio da separação de poderes. Pilar básico da democracia, deixando a intenção morrer por terra antes de ter nascido.

3 Terceiro Acto. Respeitar a dignidade de quem procura o nosso país para viver versus a modernização administrativa

Nas deambulações desta RCM, é referida a importância pelo respeito da “dignidade de quem procura o nosso país para viver e fruir das oportunidades oferecidas, assegurando um exercício adequado e proporcional dos poderes de autoridade por parte do Estado.” Até agora, como profissional da área, apenas tenho assistido a uma permanente violação do princípio da igualdade no processamento dos diferentes processos de autorização de residência, prazos previstos na lei que não são respeitados pelos serviços, demorando muitas vezes três vezes mais tempo do que o previsto.

Também assisto a um total desrespeito pela conjuntura das famílias estrangeiras e falta de coordenação com o Ministério dos Negócios Estrangeiros no processamento de vistos e por aí fora. A bola da simplificação dos processos de renovação e atribuição de passaportes foi passada para o campo do Instituto dos Registos e Notariado, IP (“IRN”).

Se o IRN, neste momento, não consegue dar resposta aos pedidos dos cidadãos nacionais, conseguirá dar dignidade ao processamento de pedidos de meio milhão de estrangeiros?

Mais, a RCM não refere quem vai processar os pedidos de atribuição de autorização de residência, será o SEA ou a GNR (?). O IRN fica apenas com competência para processos de renovação e atribuição de passaportes, garantindo mecanismos de célere tramitação… enfim esta célere tramitação espera-se que seja realizada com segurança.

De forma a zelar pela segurança que tanto defende esta nova RCM, as renovações não podem continuar a ser deferidas de um modo simplista, automaticamente em alguns casos, sem, por exemplo, confirmar se o requerente ainda tem contrato de trabalho em Portugal ou se tem morada como aconteceu em 2020… e, por outro, discriminar processos como os pedidos de renovações ARI que chegam a demorar sete e oito meses.

Enfim, muito mais haveria para escrever, mas falta o tempo e a si, caro leitor, certamente, a paciência.

Com certeza, teremos mais cabritices dentro em breve.

Ministro Cabrita saia da frente, que atrás vem gente (esperemos que mais competente).