Assunto: RELATÓRIO DA OPERAÇÃO ESPECIAL “Computas e vinho verde”
Prioridade: MÁXIMA
Importância: VITAL
Impacto: ALTÍSSIMO
Nível: ELEVADO
Categoria: NÃO TEM
Classificação: TOP SECRET CONFIDENCIAL APENAS PARA OS SEUS LINDOS OLHOS
Operacional: AGENTE XXXX XXXXXX, Nº XXX/37
Às 22:51 do dia 26 de Abril recebi uma mensagem encriptada do Centro de Acção Operacional Superior activando um código Roxo que me fez largar imediatamente o serviço onde me encontrava destacado. Na altura, tratava-se da vigilância ao sujeito de interesse XXXX XXXXXX, o operador de câmara responsável pela captação indevida de conversas sensíveis sobre assuntos de interesse nacional levadas a cabo por Suas Excelências o Senhor Presidente da República, o Senhor Presidente da Assembleia da República e o Senhor Primeiro-Ministro. Da minha perícia inicial, que entretanto passei ao colega Agente XXXXXX XXXXXXX, Nº XXX/28, concluí estarmos perante um perigoso cameraman (são muito usados agora pela extrema-direita) em conluio com um perigoso editor de site (a extrema-direita passou a recrutar nesta categoria profissional) numa típica operação de agitprop de cariz fascista.
Às 22:57 estava na sede do CAOS para receber as minhas instruções orais directamente do Tenente-Coronel XXXXXX XXXXX. A seriedade do Tenente-Coronel (que nem sequer aludiu ao nosso Benfica, nem nada) fez-me compreender a gravidade da situação. O Tenente-Coronel referiu que eu tinha sido escolhido para esta missão pela minha experiência em temas de interesse nacional relacionados com membros do Governo, uma vez que fizera parte da equipa de resposta rápida enviada ao Alentejo para colocar papel higiénico na berma da A6, de modo a fazer parecer que o trabalhador atropelado pelo Ministro Eduardo Cabrita tinha ido fazer cocó ao separador central. Esses “trabalhadores incautos” têm sido muito usados em acções desestabilizadoras levadas a cabo pela extrema-direita. Uma tarefa pela qual recebi dois louvores, uma condecoração e um fim-de-semana com tudo pago (meia-pensão) no Hotel Alcobaça, em Alcobaça.
Segundo o Tenente-Coronel, a missão, urgente e secreta, consistia na recuperação de material informático contendo informação sensível, com impacto na segurança do Estado, obtida de forma ilegal por um agente duplo ao serviço de uma potência estrangeira, que, sob a identidade de “Frederico Pinheiro”, infiltrado no gabinete do Ministro João Galamba, se introduzira nessa noite no Ministério das Infraestruturas, imobilizando 12 agentes nacionais e evadindo-se montado numa bicicleta com que atravessou uma janela de vidro reforçado, lançando-se da varanda do 4º andar. Claramente um operacional treinado e extremamente perigoso, possivelmente um agente adormecido russo, formado na Escola de Minsk do ex-KGB. Um dos colibris do General Palhassov, sem dúvida. Têm sido muito usados pela extrema-direita.
Às 23:11, disfarçado de vendedor de raspadinhas (realizei o pecúlio de 27 euros – nota de entrega em anexo), postei-me à porta da morada do alvo, no número XX da Av. XXXX XXXXX XXXXX, em Lisboa. Às 23:25, enquanto vigiava o perímetro, registei actividade suspeita por parte de um operacional disfarçado de entregador da Glovo, que interceptei e capturei. Era um paquistanês (muito usados agora pela extrema-direita). Interroguei-o durante 15 minutos. Infelizmente, não dispus de mais tempo para o fazer, pois ele ainda tinha uma entrega de raviolis e carbonara para fazer e a comida italiana fria perde a graça. Deixei-o ir, não sem antes ficar com o seu contacto, porque dá jeito ter alguém a quem ligar nos dias mais movimentados, em que o tempo de espera de um McDonalds chega a ser uns absurdos 25 minutos. Fiquei também com a sua mochila e assumi o papel de entregador, para aceder à casa do agente inimigo. Inspeccionei a refeição, o que reforçou a minha ideia de se tratar de um subterfúgio: era de um restaurante vegan. Obviamente, um agente que acaba de desempenhar uma missão fisicamente exigente e que, sem dúvida, deve permanecer em estado de alerta e prontidão imediata, não pode ter uma alimentação à base de tofu e couve chinesa.
O sabotador abriu a porta de roupão, mostrando ser um profissional que sabe o valor de armas escondidas. De imediato, confrontei-o com o seu crime. Não o negou. Pelo contrário, de pronto entregou-me o computador, dizendo: “Aqui está, peço desculpa pelo incómodo”. A sua reacção desconcertou-me e, por momentos, perdi a calma. Não resisti a perguntar: “Não tem vergonha de, com a sua infame traição, estar a desvalorizar a TAP, uma empresa tão importante para o país?” Ao que ele respondeu: “Dizer que isto desvaloriza a TAP é o mesmo que estar a vender um chaço todo ferrugento, com os pneus furados, sem amortecedores, com os vidros partidos, motor gripado, e pedir para não fumar lá dentro, porque isso o desvaloriza”.
A inteligência da resposta, juntamente com não haver vestígios de presença feminina no apartamento, fez-me ter a certeza de estar perante um dos brilhantes burocratas do ISCTE, treinados no uso de ferramentas retóricas de controlo neurolinguístico (aquilo que os civis chamam “conversa fiada”).
Para evitar ser subjugado, não o deixei continuar. Disse apenas ter pena que ele não fosse mais como o Inspector-Geral das Finanças que falsificou um parecer porque, como disse com orgulho, antes de auditor, é português. E acusei-o de, por sua causa, a comunicação social só falar nas mentiras do Governo, em vez de nos fantásticos números do PIB.
Às 23.31 estava de volta ao carro com o computador. Numa primeira análise superficial consegui aperceber-me da gravidade da situação que o país enfrenta. Por exemplo, uma avaliação da caixa de e-mail permitiu ver que muitos mails com combinações sobre ocultar documentos à Comissão Parlamentar de Inquérito são enviados através de um Outlook sem licença oficial da Microsoft. É uma vergonha para Portugal quando os seus governantes cometem aldrabices em nome do Estado através de software pirateado.
Às 23.52 voltei ao Centro de Acção Operacional Superior e entreguei o computador, dando a missão como terminada.
NOTA: foi com grande honra e satisfação que levei a cabo esta missão. Por duas razões. A mais pessoal prende-se com o facto de a vítima ter sido o Ministro João Galamba. Não é um facto muito conhecido, mas o Ministro Galamba é um herói na comunidade de inteligência portuguesa, pela intrepidez que demonstrou, há quase dez anos, quando recolheu informação sobre a captura iminente de José Sócrates para o avisar. Para amador, foi um trabalho de excelência.
A outra razão é o amor à Pátria. É a minha modesta contribuição para o esforço de defesa nacional que nos cabe a todos, não só enquanto agentes do Estado, mas como patriotas que cumprem o seu dever. A defesa da Nação face ao fascismo implica a defesa de quem a representa, o Governo; e a defesa do Governo face ao fascismo obriga à defesa de quem o sustém, o Partido. Cautela com o fascismo. Cautela com os traidores do interesse nacional, que atacam Portugal via Governo e via Partido. Não esquecer: nada contra o Estado!
A bem da Nação, Agente XXXX XXXXXX, Nº XXX/37 (assinatura ilegível)