Desde a última moção de censura que o CDS-PP apresentou, em meados de fevereiro, que o núcleo de António Costa ponderava uma ameaça de demissão. As sondagens dos socialistas estagnavam, o nepotismo perturbava a sua popularidade e a candidatura de Pedro Marques ao Parlamento Europeu era – e é – uma lástima. A votação sobre as carreiras dos professores, que juntou a direita e a esquerda numa só fotografia, abriu a Costa uma porta que procurava há algum tempo. Pela primeira vez desde a crise dos incêndios e desde o ciclo de remodelações, o primeiro-ministro vislumbrou a possibilidade de uma maioria somente sua. Tudo o resto, naturalmente, deixou de interessar. Independentemente do exagero com que se encavalitou em algo por aprovar, a jogada foi feita. E é importante clarificá-la.

Não é verdade que o processo de ‘regresso ao centro’ do PS tenha começado agora. Desde finais de 2017, pelo menos, que António Costa apresenta “a consolidação das contas públicas” como “um princípio fundamental” do seu governo. Lembro-me, por exemplo, de ouvi-lo afirmar que “não podemos consumir todos os recursos disponíveis com quem trabalha no Estado” e íamos nós a meio da legislatura. Foi assim, aliás, que o primeiro-ministro tentou esvaziar os partidos da oposição: apropriou-se do seu discurso financeiramente responsável. Mas nada disso é novo. Escrevi-o aqui, aqui e aqui.

Outra falácia das últimas semanas passa por ignorar as várias vezes que Costa já havia desprezado os seus parceiros parlamentares, como se esta rotura fosse novidade. Não falo apenas dos ataques inflamados de Mariana Mortágua às cativações de Mário Centeno, nem das exigências do Bloco de Esquerda ao ministro das Finanças, no ano passado, para “gastar a folga” orçamental. Falo, novamente, de 2017, quando o governo negociou uma descida da TSU em sede de concertação social, violando assumidamente as posições conjuntas firmadas com o BE e com Os Verdes. Costa era governo há pouco mais de um ano e já aí mostrava uma total indiferença em relação aos acordos que o haviam levado a São Bento.

Como recordar é mesmo viver, cito uma entrevista de Pedro Nuno Santos, arquiteto da ‘geringonça’, por essa altura. Sobre a possibilidade de eleições antecipadas, questionava ele: “Vamos pedir eleições para quê? Para deitar a perder não só o trabalho que estamos a fazer como criar instabilidade? A estabilidade é um valor partilhado por nós e pelo sr. Presidente da República”. Pelos vistos, para Costa, a estabilidade deixou de ser um valor a manter. Para Pedro Nuno, que provavelmente até mantém estas convicções apesar das manobras do seu primeiro-ministro, a ‘geringonça’ era para ir até ao fim. “Era só o que faltava acharem que o Partido Socialista está a olhar para as sondagens, à espera do melhor dia para se libertar dos seus parceiros. Nós somos um partido sério, de gente séria e que não vai trair uma solução que tem funcionado bem, que será boa para todos se correr bem e má para todos se correr mal”, dizia, à data, o hoje ministro.

Acerca deste recuo, no entanto, não se falou neste último mês. A solução de governo anunciada com a promessa de ser “coerente”, “estável” e “duradoura” acabou a promover uma crise política por incoerência, instabilidade e pouca vontade de perdurar. Mais irónico do que isso é, claro, António Costa invocar a “credibilidade externa” do país para justificar a sua ameaça de demissão depois de ter segurado Centeno no caso António Domingues, Constança Urbano de Sousa nas tragédias de Pedrógão e Azeredo Lopes mais de um ano depois de Tancos. Essa credibilidade, como a outrora apregoada estabilidade, mudou certamente de valor por estarmos em ano eleitoral.

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