Sem originalidade alguma, pus-me, por causa do que se passa na Catalunha, a ler e a reler George Orwell. Por causa da Catalunha e, mais ainda, por causa do nacionalismo em geral. Tinha lido há muito tempo as “Notas sobre o nacionalismo”, de 1945, que recuperam, sob a forma de ensaio, várias coisas que se encontram já nos seus escritos jornalísticos. Reler o texto Orwell, que é, para além do resto, um grande ensaísta, foi um prazer e, sob um aspecto ou outro, uma surpresa.

A surpresa vem do facto de a definição de nacionalismo que Orwell desenvolve ser declaradamente idiossincrática. Para ele, o nacionalismo significa, antes de tudo o mais, “o hábito de assumir que os seres humanos podem ser classificados como insectos” e a adesão a um grupo particular de seres humanos em oposição aos outros. O que é curioso é que tais grupos, aos olhos de Orwell, não são forçosamente as nações. Dito de outra maneira: o nacionalismo não se limita a ser, embora obviamente o possa ser, uma versão degradada do patriotismo. O nacionalismo pode ter por objecto o proletariado, o anti-semitismo, as várias religiões, e por aí adiante. A descrição dos hábitos mentais nacionalistas, governados pela obsessão do “prestígio competitivo” e pelo desejo do poder, ocupa um lugar central no ensaio. E, dada a latitude do conceito tal como Orwell o emprega, há muita coisa que o ensaio nos ajuda a pensar, para além dos fenómenos nacionalistas na sua acepção mais comum.

Claro que o motivo do prestígio competitivo tem muito a ver com o nacionalismo catalão, por exemplo. Como tem a ver com o nacionalismo catalão a obsessão de espalhar a sua própria língua em oposição às outras línguas. Ou ainda o facto de, segundo Orwell, os nacionalistas mais extremistas terem muitas vezes origens distintas das do país que se torna o objecto da sua fixação (Hitler, é claro, vem imediatamente ao espírito, tal como Estaline). Orwell chama a isto “nacionalismo transferido”. Na mesma linha, os movimentos fascistas receberam no seu seio muita gente vinda do comunismo. A necessidade absoluta de fixação permite uma deslocação de objecto, que não implica de forma alguma uma transformação dos hábitos mentais e das emoções.

Mas outros aspectos do nacionalismo, tal como Orwell o entende, aplicam-se também a casos que nada têm a ver com o nacionalismo tal como habitualmente entendido. Tomemos o exemplo da “indiferença à realidade”. Central para o nacionalismo é a convicção que o passado pode ser alterado (um tema central, como se sabe, em 1984) e que a versão que se adopta deste pode não coincidir com a informação disponível a todos mas corresponde à maneira como o passado se apresenta aos olhos de Deus. Deste modo, o mais indisputável facto pode ser negado e a indiferença para com a verdade objectiva goza do privilégio de ser total. Por exemplo: o pacto germano-soviético de 1939 não existiu, ou a defunta URSS encontrava-se virgem de qualquer campo de concentração.

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Há factos que são, para o nacionalista, literalmente insuportáveis e que se trata de negar da forma mais radical possível. Pensemos no Portugal dos nossos dias, mais concretamente na vinda da troika. No discurso dos nacionalistas do PS, é como se ela não tivesse existido e não tivesse sido chamada pelo governo de Sócrates. Sócrates, de resto, apesar de toda a aparência em contrário, particularmente gritante desde ontem, parece também nunca ter existido. Seus ex-ministros e actuais ministros de Costa (e o próprio Costa, seu ex-número dois), quando obrigados a falar dele evitam pronunciar-lhe sequer o nome. A quase bancarrota socrática não teve lugar. A troika foi uma invenção de Passos Coelho, uma sua criação ex nihilo. Muito do ódio (digo bem: ódio) a Passos Coelho resulta do facto de ele, que liderou o combate à catástrofe, ser uma testemunha viva da sua existência. Para o pensamento mágico socialista, a sua substituição por outro líder do PSD era um imperativo nacionalista. Um pouco como se, queimando a efígie dele, o passado pudesse ser modificado.

Para além da descrição dos hábitos mentais nacionalistas, Orwell oferece uma sua tipologia: nacionalismo positivo, nacionalismo transferido e nacionalismo negativo. Não faria sentido estar aqui a comentá-la e por isso limito-me a mencionar um aspecto que Orwell refere e com que lida em vários outros lugares também, sobretudo em conexão com o anti-semitismo, sobre o qual muito escreveu: o facto de o nacionalismo ser uma tendência ou uma atitude mental “que existe em todas as nossas mentes e que perverte o nosso pensamento sem necessariamente ocorrer no estado puro ou operar continuamente”. O nacionalismo pode ser “intermitente e limitado”.

É interessante que o que Orwell diz coincide em larga medida com aquilo que Sartre (cujo livro sobre o anti-semitismo Orwell, noutro lugar, critica) escreve sobre a má-fé em O ser e o nada. Também a má-fé corresponde a uma disposição original do espírito que podemos observar em nós mesmos. E, tal como o nacionalismo segundo Orwell, ela é, no comum das pessoas, intermitente e limitada. Também ela visa a exclusão do outro. Em Sartre, a transformação do outro numa coisa, a sua petrificação. Também ela transforma o outro num ente que, o que quer que faça, só pode manifestar uma natureza negativa. Nos tempos do Presidente George W. Bush, contava-se uma anedota óptima. O Presidente Bush recebe o Papa e com ele dá um passeio de barco. Súbito, um golpe de vento faz voar o chapéu do Papa para a água. Bush sai do barco, caminha sobre a água, pega no chapéu e volta para o barco, caminhando de novo sobre a água. Título dos jornais do dia seguinte: “O Presidente Bush não sabe nadar”.

Muito do que Orwell diz sobre os vários nacionalismos ajuda-nos a perceber o que se passa no mundo e em Portugal, mesmo em relação aos mais recentes acontecimentos. Certamente mais do que ouvimos, por exemplo, nos programas televisivos de Marques Mendes, cada vez mais o Rui Santos do comentário político, sem as curiosas qualidades do original. Agora que o leninismo do Outubro catalão parece ter chegado a um impasse (o estudo das doutrinas do mestre e a sua aplicação cuidadosa não garantem a posse do génio dele) e, embora o perigo continue bem real, o ridículo tenha tomado conta da cena (independência fumada, mas não inalada), vale mesmo a pena ler Orwell. Porque os profissionais do costume e os idiotas eventualmente úteis continuam activos e é preciso compreender os seus hábitos mentais. Tanto mais que a propaganda não pára. É ver, por exemplo, o que a Economist, que, é verdade, tem o hábito de ser cega a muitos aspectos da realidade política, diz sobre a situação espanhola e particularmente sobre a violência policial a 1 de Outubro. Dá a impressão que nem uma só linha de Lenine lhes passou alguma vez sob os olhos. Quando nada daquilo, planeado ao milímetro, se percebe sem referência a ele. Orwell, nisto como noutras coisas, ajuda imenso.