Como se sabe, não há um único papel com a assinatura de Adolf Hitler a ordenar o extermínio de judeus. Os membros do alto comando nazi foram extremamente cautelosos na tentativa burocrática de ocultar os seus planos. Só cometeram um erro: houve um papel que ficou para trás. Trata-se da ata n.º 16 (foram feitas 30 e destruídas 29) da chamada conferência de Wannsee. Aí, a 20 de janeiro de 1942, Reinhard Heydrich, chefe executivo das SS, explicou aos representantes de vários ministérios alemães os detalhes da “solução final” para o “problema judeu”. Até levou com ele uma lista com o número estimado de judeus nos diferentes países — em Portugal, segundo o documento, haveria três mil. A conferência foi restrita: juntou apenas 15 pessoas. A reunião foi curta: durou pouco mais de uma hora e meia. O ambiente foi festivo: no final, todos tomaram conhaque.

Na tenebrosa história do Holocausto, há escassez de documentos como este — mas há abundância de fotografias. Apesar dos cuidados do regime, sobraram os retratos. Ao longo dos anos, estas imagens serviram vários propósitos. Logo depois da guerra, foram apresentadas como prova em tribunal, no julgamento de Nuremberga. Nas décadas seguintes, serviram de memória histórica, mostrando para lá de qualquer dúvida aquilo que realmente tinha acontecido nos campos de concentração. E, recentemente, com o projeto #LastSeen, dos Arquivos Arolsen, milhares de fotografias disponibilizadas online têm servido para identificar vítimas e carrascos que até agora se tinham mantido anónimos.

Algumas das pessoas que tiraram estas fotografias eram exemplos de completa abjeção; outras eram modelos de comovedora coragem. Em 1940 e 1942, o próprio Joseph Goebbels enviou equipas de fotógrafos para os guetos da Polónia para tirarem imagens que pudessem servir fins de propaganda. Noutros países, simpatizantes nazis fizeram o mesmo. Em 1943, na Holanda, Herman Heukels fotografou algumas das 5500 pessoas que foram enviadas de Amesterdão para os campos de concentração — muitas, como conta o New York Times, usando sobretudos pesados com a estrela que os nazis impunham aos judeus, apesar de ser Verão, por não saberem quanto tempo ficariam fora. Herman Heukels teve cuidados, o que mostra que sabia bem que estava a participar numa infâmia: nas imagens não aparecem nunca os oficiais nazis nem os polícias holandeses que estavam a organizar a deportação.

Outros nazis tiravam fotos para efeitos administrativos. No chamado “Álbum de Auschwitz” estão guardadas 197 fotografias que serviram, em 1944, para documentar, de forma diligente, a chegada a Birkenau de judeus que tinham sido capturados na Hungria. No gueto de Varsóvia foi feito o mesmo: a “coleção Stroop” junta dezenas de fotografias que constaram de um relatório escrito pelo oficial das SS Jurgen Stroop e que registam os dias em que foi levada a cabo a “liquidação” do gueto. As imagens, entre muitas outras indignidades, mostram filas de judeus de braços no ar.

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As lideranças nazis sabiam que as fotografias eram perigosas e tinham de ser controladas. Por isso, a dada altura o Estado-Maior alemão proibiu os soldados de tirarem as chamadas “fotos souvenir”, que pretendiam servir de memória da guerra quando voltassem a casa. Cada imagem podia, potencialmente, servir de confirmação e de incriminação.

A ideia de Alberto Errera era exatamente essa — confirmar e incriminar. Este judeu grego foi levado pelos nazis para Auschwitz e incorporado nos sonderkommando do crematório V. Os sonderkommando eram prisioneiros encarregues de limpar as câmaras de gás e ajudar a queimar os corpos. Foi precisamente um desses momentos que Alberto Errera registou em quatro imagens — ficaram conhecidas como “as fotografias do sonderkommando” porque, durante anos, não era conhecido o seu autor. Depois de tirar as fotos, Errera enterrou a máquina, temendo ser descoberto. Acabou morto ao tentar uma fuga.

Outras fotografias ficaram esquecidas durante mais de oito décadas. Em janeiro deste ano, foram publicadas pela primeira vez uma série de imagens que mostram várias famílias judias a serem retiradas de casa na Alemanha. Uns seriam enviados para a Lituânia, outros para a Polónia. Daquele enorme grupo, sobreviveram apenas duas pessoas. Várias destas fotos inéditas foram tiradas pelo arquitecto judeu Albert Hadda enquanto se escondia, de forma incrivelmente destemida, no interior de uma casa ou de um carro.

Nos últimos dias, alguns críticos do governo da AD, julgando-se bravos guerreiros das redes sociais, publicaram no Twitter fotos como estas ao lado de imagens da operação policial no Martim Moniz. Na cabeça deles, é tudo a mesma coisa: 2024 é igual a 1944; um Estado de direito é igual a um Estado totalitário; a PSP é igual às SS. Parecem aquela influencer destituída de senso que no ano passado tirou uma fotografia em pose à entrada de Auschwitz. Uma pessoa até quer comentar tudo isto — mas, sinceramente, faltam palavras. E, em certo sentido, ainda bem.