1 Há precisamente um mês, a 9 de Abril, foi publicado na América um livro que vem dominando o debate público educado na imprensa, rádio e televisão. Chama-se The Right: The Hundred Year War for American Conservatism (Basic Books); o autor é Mathew Continetti, ‘senior fellow’ do muito distinto American Enterprise Institute for Public Policy Research, com sede em Washington, DC. Não é impossível que esse debate venha a chegar à Europa — e eu certamente acredito que seria muito desejável que pudesse chegar cá.

Apesar de o título da obra começar pelo singular ‘The Right’, Mathew Continetti enfatiza que sempre houve na América várias ‘direitas’ no interior daquilo que é por vezes designado por ‘a Direita’. E recorda que, talvez em boa parte por isso mesmo, esse termo ‘a Direita’ foi em regra particularmente usado e preferido por uma certa esquerda — em regra, a chamada esquerda radical, que vê o debate político como luta de classes, entre ‘o povo contra as elites’ e entre ‘a esquerda contra a direita’.

Um traço curioso da época actual é que a designação ‘a Direita’ está hoje a ser retomado com entusiasmo por certos sectores que se reclamam da Direita e se dizem inimigos da esquerda — bem como inimigos da própria direita democrática e moderada (que raramente usa essa expressão ‘direita’, preferindo, na América, as expressões “conservadores’ ou ‘Republicanos’).

2 Após uma longa e detalhada análise historiográfica das várias correntes conservadoras ou republicanas na América desde a década de 1920, Continetti é claro na identificação de vários elementos distintivos entre essas correntes.

Entre eles, o autor sublinha, em primeiro lugar, a distinção entre ‘isolacionismo vs. multilateralismo’. O isolacionismo, em regra associado ao proteccionismo económico, também chamado “anti-globalismo”, foi dominante entre os Republicanos antes e durante o início da II Guerra Mundial (chegando a ter tonalidades pró-nazis e anti-semitas, ainda que marginais). Esse isolacionismo anti-globalista ficou de tal forma desacreditado que só com o multilaterismo anti-comunista e pró-democracia de Ronald Reagan, na década de 1980, a política externa Republicana retomou credibilidade — e, em rigor (felizmente também, em meu entender), supremacia.

Um segundo elemento distintivo tem a ver com a imigração. Também na década de 1920 até ao início da II Guerra, o discurso anti-imigração era dominante entre os Republicanos. Foi também Ronald Reagan quem restabeleceu a tradição mais antiga dos Republicanos a favor da imigração, distinguindo entre imigração legal, que apoiou, e ilegal, que condenou. Reagan recordou que a América é uma nação feita de e por imigrantes — e que estes devem continuar a ser bem recebidos, desde que aceitem e assumam os chamados ‘valores americanos’ consagrados na Constituição.

Em terceiro lugar, Continetti recorda a antiga distinção entre contra-revolucionários e conservadores — hoje de novo em voga entre muitos que se reclamam “do povo contra as elites”. Continetti observa que os contra-revolucionários (expressão usada por eles próprios) adoptaram a estrutura intelectual e o vocabulário do marxismo. Concebem o debate político como luta de classes — entre uma ‘classe dominante’ associada ao estado e uma ‘classe popular’ que tenta resistir ao controlo pelas elites. Para defender a chamada ‘classe popular’, autores contra-revolucionários atacam os Republicanos moderados como ‘traidores’ e proclamam a necessidade de ‘regime change’ —só que neste caso trata-se da mudança do próprio regime constitucional americano. E esse ‘regime change’ será promovido pelos MARs: “Middle American Radicals” (por vezes também associados ao chamado ‘Tea Party’).

3 Continetti observa que estas ideias radicais gozam hoje de grande popularidade entre os eleitores republicanos. É este caldo de cultura contra-revolucionário, alimentado por uma deriva revolucionária entre os Democratas, expressa pelo patético sr. Bernie Sanders, que gerou o sucesso eleitoral do sr. Trump (o qual, como aqui repetidamente chamei a atenção, continua a nunca abotoar o casaco e a insultar aos gritos os adversários, numa clara postura revolucionária e ungentlemanly, que nunca seria admitida num Gentlemen’s Club).

Mas Continetti certeiramente recorda que, também na década de 1920, ideias semelhantes gozavam de grande popularidade entre os eleitores republicanos — e depois estiveram 40 anos no deserto (‘in the wilderness’), até que o conservadorismo liberal clássico dos Republicanos gerou o saudoso Ronald Reagan (em aliança atlântica com a não menos saudosa Margaret Thatcher).

4 Felizmente, acrescenta Continetti, permanecem no partido Republicano conservadores não revolucionários que ‘compreendem que o conservadorismo foi fundado na oposição aos extremos, quer da revolução quer da contra-revolução. Que negam que as instituições políticas, sociais e culturais da América já não possam ser reparadas. Que sustentam que este país permanece digno do nosso orgulho e da nossa defesa. Que negam que estejamos numa guerra civil, quente ou fria. Que sustentam que os nossos adversários políticos ainda são nossos concidadãos. Que sabem que o nosso (demasiado grande) aparelho de estado não é um regime totalitário. […] Ainda há conservadores que permanecem leais aos princípios e instituições dos Fundadores da América e da liberdade ordeira que está no seu coração.”

5 Talvez possa ser aqui ainda brevemente recordado que um problema político-intelectual muito semelhante — embora de tonalidade dominante contrária — esteve presente em Portugal após o 25 de Abril de 1974 e o 25 de Novembro de 1975, e no plano cultural, muito depois disso, até hoje.

Tratava-se da dicotomia “Fascismo ou Revolução”, que tinha como seu principal adversário o socialista democrático Mário Soares — então designado como ‘o homem dos americanos’.  Mário Soares simplesmente recusou com Olímpico (e, como ele próprio disse, ‘burguês’) desprezo essa ‘dicotomia infeliz’ entre a chamada ‘Esquerda unida contra a Direita’, também expressa no slogan ‘O Povo Unido jamais será vencido’ ou no slogan ‘Fascismo ou Revolução’. E Soares proclamou corajosamente a prioridade da democracia liberal pluralista, fundada na concorrência parlamentar, pacífica e civilizada, entre esquerda democrática e direita democrática, bem como na firme oposição comum contra a esquerda e direita revolucionárias.

6 Voltarei seguramente a este assunto. Para já, gostaria de recordar o livro de Jerry Z. Muller, Conservatism: An Anthology of Social and Political Thought from David Hume to the Present (Princeton University Press, 1997), e sobretudo o clássico de Lord Quinton, The Politics of Imperfection: The Religious and Secular Traditions of Conservative Thought in England from Hooker to Oakeshott (1978).

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