Mireille Knoll, judia, tinha 85 anos quando, em Março de 2018, foi violentamente esfaqueada até à morte e subsequentemente queimada no seu apartamento no 11º arrondissment no leste de Paris. Este ato violento foi perpetrado por dois jovens na casa dos 20, um deles, Yacine Mihoub, um vizinho que Mireille conhecia e acompanhava desde a sua infância e que a ajudava ocasionalmente em pequenas tarefas domésticas. 76 anos antes, em 1942, quando tinha apenas 9 anos, Mireille Knoll conseguiu escapar e sobreviver à perseguição Nazi em Paris e consequentemente à deportação para os campos de concentração e de extermínio.

Infelizmente o caso de Mireille está longe de ser isolado, sobretudo em França, onde a comunidade e as instituições judaicas vivem em constante estado de alerta e insegurança. Um ano antes, outro trágico acontecimento com contornos muitos semelhantes teve lugar: em Abril de 2017, Sarah Halimi, uma senhora judia ortodoxa de 65 anos, foi brutalmente assassinada no seu apartamento, no mesmo bairro, e também pelo seu vizinho, Kobili Traoré, um jovem Franco-Maliano. Em 2006, foi a vez do jovem Ilan Halimi que foi raptado e torturado durante semanas até à morte por um grupo de rapazes, de origem Magrebina que se auto-designava o ‘gang dos bárbaros’. Todos estes atos, como foi de seguida apurado, tiveram motivações anti-semitas.

Apenas na última década foram registados dezenas de ataques e incidentes anti-semitas em vários países Europeus que tiraram a vida 18 pessoas: os atentados e tiroteios à escola Judaica de Toulouse (que assassinou várias crianças), 2012, ao Museu Judaico em Bruxelas, 2014, à Sinagoga de Copenhaga, em 2015, a supermercados ‘Kasher’ em Paris, 2015, para citar apenas alguns exemplos. São reportados com regularidade múltiplos incidentes e actos de vandalismo contra edifícios e infra-estruturas judaicas, locais de culto, cemitérios, e também inúmeros episódios de discurso de ódio e incitação anti-semita na internet. Escolas e edifícios de instituições judaicas exigem todo o tipo de medidas de segurança reforçada – por motivos óbvios. Vários relatórios internacionais da OSCE, do Conselho da Europa e da Agência dos Direitos Fundamentais da UE registam um recrudescimento do anti-semitismo nos últimos anos.

Os incidentes são muitos e os assassínios periódicos de judeus tem causado ondas de choque e revolta na comunidade Judaica internacional e suscitado um debate aceso em França sobre a ‘guerra cultural’ entre várias comunidades num país que evita a todo o custo o debate ‘identitário’. A comunidade Judaica queixa-se da cobardia dos dirigentes políticos e da indiferença dos média: os primeiros por hesitarem em reconhecer a origem do problema, os segundos por ignorarem e não darem o devido destaque a estes actos.

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O início desta semana foi marcado pelas comemorações do 75º aniversário da libertação de Auschwitz-Birkenau no qual pudemos assistir à demonstração global de homenagem e tributo às vítimas do Holocausto. Inúmeras mensagens recordaram o horror e as atrocidades cometidas e os testemunhos dos poucos sobreviventes ainda vivos. Mas há uma dimensão deste horror e ódio racial que tem escapado à maioria das mensagens: como ele se manifesta ainda no presente e em diferentes contextos.

O caso de Mireille é singular na medida em que expõe de forma gritante a ironia do destino e o vazio das palavras e da promessa ‘Nunca Mais’ – esfrega na cara de todos a indiferença global perante este grito de memória que tem ecoado em vão ao longo das décadas. A história de luta pela sobrevivência de Mireille Knoll, teve um trágico desfecho pois se em criança conseguiu escapar milagrosamente ao  Holocausto, acabaria por ser assassinada, no final da vida, pelas mesmas razões que o motivaram: simplesmente por ser judia.

O maior tributo que se pode dar às vítimas não é apenas conhecer Auschwitz e as histórias dos sobreviventes mas também lembrar e reconhecer as vítimas do presente. Retirar as devidas lições do passado é reconhecer, nos dias de hoje, com os contornos e o espirito desta época, os mesmos sinais que levaram à indiferença, ao conformismo, à cobardia de muitos para desafiarem o status quo nas décadas que precederam o maior genocídio da História motivado por uma clara ideologia racista.

O anti-semitismo seja ele perpetrado por radicais islâmicos, jovens delinquentes ou supremacistas brancos, manifesta-se da mesma forma que o racismo e a xenofobia se manifestam em qualquer parte do Mundo.

E se há lição a retirar é esta: o anti-semitismo e o racismo não começam nas câmaras gás nem nos campos de concentração. Nem tão pouco começam com o assassínio de uma sobrevivente do Holocausto no conforto de sua casa.

Começam nos pequenos gestos e incidentes isolados, aparentemente sem maldade. Começam nas expressões pejorativas, supostamente inofensivas, como ’preto’ ou ‘semítico.’ Começam no gesto do motorista do autocarro, ou de um qualquer transeunte, que se irrita com um cidadão e por este ser negro, lhe grita ‘vai para a tua terra’. Começam nos graffitis de suásticas espalhadas nas paredes das ruas da cidade. Começam no ‘incidente’ da saudação nazi nos comícios de um partido como o Chega. Começa quando à mínima manifestação de discórdia, um deputado se lembra de defender a ‘devolução’ de outra deputada para o ‘seu país’. Começa também na sistemática e persistente desvalorização e indiferença do problema, seja ele um acto anti-semita, a violência policial desproporcionada contra uma cidadã negra, ou a diabolização generalizada de um povo. Começa com um ‘não sou racista, mas…’. Começa quando essa raiva e revolta colectiva contra o estado das coisas é instrumentalizada e canalizada contra o que se considera serem ‘corpos estranhos’ sejam eles negros, judeus, muçulmanos, ciganos ou estrangeiros como se fossem eles a causa de todos os males.

Ninguém é ‘declaradamente racista’. Não é assim que o racismo se manifesta.

‘Nunca mais’ é nunca esquecer mas acima de tudo é estarmos conscientes que o Holocausto começou nos actos mais singelos aparentemente, repito, inofensivos.