O primeiro-ministro afirmou, no México, que “na transversalidade do que são as verbas dedicadas à Cultura, que envolve ensino artístico, que envolve a promoção do cinema, o orçamento do próprio Ministério da Cultura, excede um por cento do Orçamento Geral do Estado (OE2019)”. Quando ouvi esta declaração de António Costa, pensei que a afirmação despertaria a indignação do sector cultural. Afinal, não se trata apenas de uma falsidade inquestionável em modo fake news: as verbas da Cultura estão muito longe desse 1% do OE2019. Trata-se, também, de uma falsidade ofensiva para a luta do sector cultural, que em grande medida o apoiou na sua eleição no PS. Primeiro, porque a afirmação procura associar à Cultura verbas que vêm de outras áreas, como a Educação, para inflacionar os números (e mesmo assim ficar aquém). Segundo, porque há muitos anos que o sector cultural exige 1% do PIB para a Cultura, meta que o seu governo tinha recentemente comentado e informado não ser possível atingir. Factos que António Costa fingiu desconhecer – “oiço falar desse um por cento, não sei bem do que é que falam; é um por cento do orçamento, do PIB, das receitas gerais?”. Ora, passada uma semana, ninguém do sector cultural se atreveu a reclamar contra essa evidente mentira – com excepção para o ex-ministro Carrilho.
A informação que consta do OE2019 desmente o primeiro-ministro. As contas são muito simples. Para 2019, o Ministério da Cultura tem um orçamento de 501 milhões de euros, dos quais apenas 245 milhões correspondem a investimento na Cultura (cf. página 12 da nota explicativa), sendo os outros 256 milhões de euros para a Comunicação Social, cuja tutela política é a mesma – António Costa prefere ignorar a distinção e ter por referência o orçamento global do ministério. A isto, o primeiro-ministro junta ainda o ensino artístico, que está na esfera da Educação, cujo valor de financiamento acresce uns 62 milhões de euros às contas. Ou seja, António Costa montou um argumento em que a Cultura vale cerca de 563 milhões de euros, englobando erradamente a Comunicação Social e parte da despesa da Educação. E, pior ainda, mesmo assim as contas de António Costa não chegam perto da meta do 1% do OE2019. Se compararmos esse valor total (563 milhões de euros) com a despesa efectiva prevista no OE2019, que ascende a cerca de 96.885 milhões de euros (cf. página 79 do relatório), a Cultura valeria 0,58% do OE2019. Se compararmos esse valor total com a despesa prevista para a soma das áreas de governação, ou seja 77.102 milhões de euros (excluindo as despesas dos órgãos de soberania e da gestão de dívida, programas orçamentais P01 e P05 respectivamente), então a Cultura valeria 0,73%. E, claro, se formos sérios e, ao contrário de António Costa, pusermos de lado as despesas com a Comunicação Social e com o ensino artístico, olhando apenas para a verba efectivamente dedicada à Cultura, então as percentagens caem a pique: 0,25% da despesa efectiva do OE2019 e 0,32% da despesa prevista para as áreas de governação. Muito muito longe dos 1% que António Costa assegurou.
Sim, esta mentira é sobre Cultura. Mas é também sobre muito mais do que isso: reflecte um modus operandi transversal e desenha o duplo retrato do estado da nação. Numa face, de como o governo (e, em particular, o primeiro-ministro) tem uma relação de indiferença para com a verdade, dizendo o que em cada momento convém dizer e atrevendo-se até a lançar números falsos e fáceis de desmentir se isso, na ocasião, lhe valer elogios e manchetes. Com três anos do actual governo, instituiu-se uma certa habituação à mentira como narrativa política, servindo de base para as “vitórias” do governo e fazendo lembrar tempos de má memória – a ideia de fim das políticas de austeridade orçamental é, talvez, a maior e mais repetida dessas mentiras.
Na outra face está a fragilidade do escrutínio ao governo, que explica a facilidade com que as várias mentiras passam. Seja porque PCP e BE ficam calados quando a mentira lhes convém – como conveio neste episódio sobre o orçamento da cultura, logo a eles que são os representantes do sector cultural na exigência de atribuição de 1% do PIB. Seja porque a oposição está desorganizada e não tem força para combater o tráfego de fake news em cada área da governação. Seja, por fim, porque já nem sequer os principais interessados protestam (como neste episódio da Cultura), porque a cada vez maior dependência no Estado (e, paralelamente, no governo) aconselha prudência nas críticas, não vá alguém chatear-se e fechar a torneira do dinheiro. À sua maneira, Portugal é hoje um país de dependentes e amordaçados.