Na formidável infantilidade com que é hábito pensar estas coisas, o mundo devia estar impecavelmente unido. Devia haver uma espécie de vontade política global que nos precavesse de todas as discórdias e conflitos. Idealmente, um governo mundial que pusesse termo a todos os egoísmos nacionais, vestígios de um passado que seria bom esquecer por inteiro. Reinaria entre os povos uma igualdade sem falhas. Libertos das várias perversidades do espírito acumuladas durante séculos de história, uma espécie de atracção universal entre os humanos e um amor político quase cósmico dever-nos-iam conduzir a uma sublime homogeneidade e a uma perfeitíssima unidade. Resultado? A paz perpétua, ou algo assim.

Desgraçadamente, os belos sonhos, por mais imperativos que pareçam, tendem a ser abalados. Em primeiro lugar, por factos que nos parecem extraordinários, como o terrorismo islâmico do 11 de Setembro de 2001 e as suas infinitas sequelas ou as actuais ameaças nucleares de Kim Jong-un. Factos que, apesar das sábias explicações dos especialistas, nos são difíceis de compreender. Mas também em virtude de processos que se dão, por assim dizer, no nosso seio e que nos parecem incompatíveis com a nossa natureza ilustrada. Não elegeram os americanos Donald Trump, que quer a América grande de novo, depois do quase instantâneo Prémio Nobel da Paz Obama? Não está a Grã-Bretanha, ofendendo os bons costumes, a sair da União Europeia? E por onde anda o combate universal ao aquecimento global antropogenicamente induzido? Isso e uma infindade de outros pequenos ou grandes sinais, como a xenofobia, que trazem à luz realidades que se julgavam definitivamente enterradas e que parecem indicar que o reino cósmico do amor conheceu o seu termo. À atracção substituiu-se a repulsão, à força centrípeta da união a força centrífuga da dispersão, aos insensíveis progressos para um Estado único (mesmo não ousando dizer o seu nome) o pesadelo das soberanias. O horror.

Mas não seria mais útil e eficaz tentar pensar as coisas de outra maneira? Quer dizer: em vez de imaginarmos o mundo submetido ao combate de duas forças antagónicas irredutíveis, procurar a relação entre uma e outra e o modo como uma suscita, a partir de si mesma, a outra? Não seria mais razoável e não nos permitiria orientarmo-nos melhor no pensamento?

É claro que essa maneira de pensar nos obrigaria a abandonar várias ilusões que a muita gente parecem indispensáveis, nomeadamente a ilusão de que o mundo político humano é uno e que o nosso comprometimento com ele é total – ou não é nada. A ilusão é poderosa, mas é uma ilusão à mesma. O mundo político humano é, pela sua própria essência, uma realidade fragmentada e o nosso comprometimento com ele é matéria de grau. O próximo é-nos mais caro do que o longínquo e não há maneira de lhe dar a volta, e é o próximo que mais estimula o nosso sentimento de responsabilidade. E as categorias do “próximo” e do “longínquo”, se bem que mutáveis, não deixaram de existir e de serem fundamentais nas nossas vidas, por mais que influentes discursos contemporâneos as vejam como velharias sem vigência actual.

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Uma boa parte das trapalhadas em que nos metemos vem da nossa ignorância disto. Tentando criar a proximidade máxima, engendramos os movimentos que conduzem ao distanciamento. A busca da total homogeneidade leva ao excesso no sentido contrário. A verdade é que tanto a ilusão da unidade política perfeita da nossa espécie como a ilusão simétrica de um fechamento absoluto das comunidades nos impedem de pensar direito o modo como nos ligamos uns aos outros, as formas da continuidade e da afinidade que nos são possíveis. O amor incontido pela humanidade que jornais e televisões com espantosa regularidade nos dão a conhecer é simultaneamente sintoma e motivo de desenvolvimento dessa ignorância.

De Kant a John Rawls (este pelo menos a partir de certa altura), muita da melhor filosofia política procurou seguir a via média atrás referida, reconhecendo os perigos de qualquer das duas posições extremas. Ambas parecem incompatíveis com essa criatura de paixões que é o ser humano. A hospitalidade universal, para falar como Kant, é um bem a desejar, mas ela não só não é incompatível com a existência de fronteiras, como até a requer. Good fences make good neighbours, escrevia Robert Frost, que me tem chegado muito aos ouvidos. E Rawls via como desejável para a ordem internacional um comércio efectivo entre sociedades liberais e sociedades hierárquicas tradicionais, nas condições pouco ideais do nosso mundo.

Fora desse comércio encontram-se, para Rawls, os Estados párias. Como é obviamente, nos nossos dias, a Coreia do Norte, e como seria o modelo político que o terrorismo islâmico visa criar. Em relação a estes, de facto, não há como buscar continuidades, graus, afinidades. São, para todos os efeitos, ameaças existenciais que é preciso combater. Mas em relação a todos os outros são as afinidades que é preciso procurar. A ilusão de um governo mundial, que está muito mais presente aí do que parece, bem como a ilusão simétrica de comunidades perfeitamente fechadas umas em relação às outras, não se recomendam: destroem continuidades e afinidades. Infelizmente, tudo tem sido feito, com as melhores intenções do mundo, para as estimular. Nada nestas coisas acontece por acaso.