Recordo-me perfeitamente. Não foi há muito tempo. Pelo menos não para o meu tempo psicológico. Pouco antes da Páscoa de 2019, um bárbaro e horrível ataque a uma mesquita na cidade neozelandesa de Christchurch provocou meia centena de mortos. A impressão com que fiquei na ocasião, foi que todo o mundo, e com toda a razão e mais alguma, ficou chocado, indignado, abalado por tal evento totalmente inaceitável.

Como é que algo assim pudera acontecer num país como a Nova Zelândia? Como é que alguém, tão cheio de ódio e cinismo, pôde realizar uma ação tão repugnante? O tonitruar de espanto ainda ressoa hoje e certamente na consciência de quem ficou emocionado e afetado por esse massacre que, direta ou indiretamente, originou cerca de duas dezenas e meia de textos neste mesmo órgão noticioso que, tão bondosamente, acolhe estas minhas presentes palavras.

Um massacre tão repugnante que – apesar de no dia de Páscoa desse mesmo ano ter havido uma série de ataques bombistas no Sri Lanka que causaram perto de 250 mortos – foi estimado como o mais trágico e sangrento evento violento de 2019, nas habituais “listas dos mais importantes eventos do ano” elaboradas por distintos órgãos de comunicação social. A matemática e relativismo neomodernos também dão nisto, a ponto dos membros da proeminente Religion News Association dos EUA nem terem colocado, entre os 10 mais importantes eventos religiosos de 2019 e ao contrário do evento neozelandes, o que se passou no país insular do Índico.

Também não ouvi – mas admito que estou a ouvir cada vez pior e ando muito ocupado – quase nenhuns ecos ao, para mim, também bárbaro, cruel, cobarde, hediondo, chocante e revoltante ataque perpetrado durante o, tão importante para os cristãos, dia de Pentecostes numa Igreja Católica na urbe nigeriana de Owo. No Observador, contam-se, no momento em que escrevo este texto, por menos do que os dedos de uma mão as notícias acerca desse acontecimento – todas elas provindas da redação da Agência Lusa, por vezes genuinamente surreal quando trata de temas religiosos.

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Owo não é Christchurch. Situada no Sudoeste na Nigéria, Owo tem menos cem mil habitantes do que Christchurch. Ou seja: tem quase a mesma população do que a cidade do Porto. Mais: ao contrário de Christchurch, não costuma ser muito falada entre nós; nem abrir noticiários; ou aparecer nas primeiras páginas de jornais impressos. Alguém se lembra disso ter acontecido? Eu não. Até há poucos dias nunca tinha ouvido falar em Owo. Christchurch, pelo seu lado, estava nos ouvidos da nossa atenção desde, pelo menos, os dois grandes tremores de terra que lá ocorreram, no espaço de menos de seis meses, na passagem da primeira para a segunda década deste milénio.

Em Christchurch estivemos, no ano de 2019, ante um evento sangrento que mereceu a visita do Secretário Geral das Nações Unidas. Mas, felizmente, tratou-se de algo isolado no que é a vida comum da sociedade da Nova Zelândia (e, em geral, no mundo). Em Owo, por seu lado, o que lá sucedeu já quase é apenas mais um mero ramo outonal a estender-se de uma enorme árvore de carnificinas anónimas sucedidas contra cristãos na Nigéria (e no Sahel em geral). Efetivamente, no mais populoso e mais rico país africano, estima-se que, desde o começo deste milénio, um cristão tenha sido morto a cada duas horas, devido apenas a ser cristão.

Se, no ano passado (2021), 5.898 cristãos foram comprovadamente mortos a nível mundial por ódio à sua fé, mais de 80% dos mesmos foram-no na República Federal da Nigéria. E somente nos três primeiros meses de este ano, mais de 1.000 cristãos foram mortos e cerca de 4.000 raptados. Desse sangue vertido – de modo imediato (por tantos mártires, que aceitam que lhes tirem a vida para testemunharem a Vida) ou, então, progressivamente (por mais confessores ainda, que sofrem padecimentos dilacerantes) – quase ninguém fala. Nem me parece que se queira falar.

Não irei perorar longamente acerca dos possíveis motivos para o silêncio que acabei de mencionar. Mas creio que não estarei muito errado se disser que isso se deve ao facto de muita gente, também nos mais ou menos relevantes e conhecidos órgãos de comunicação social, se ter entregado, durante anos a fio, a um relato eufemístico e distorcido do que se estava, e está, a passar na Nigéria. A um relato que, na linha de uma já quase defunta pós-modernidade (à qual ainda se agarram alguns para venderem os seus livros votados a ela), recusava metanarrativas sternianas e preferia micronarrativas folclorianas, que punham de lado elementos matriciais para se entender tal drama.

Os mortos, foram-nos dizendo os astuciosos vates com que nos calhou viver, eram o mero, e até necessário, resultado de lutas pela posse da escassa terra fecunda que existe na cintura saheliana. De um lado, os indigentes nómadas fulani que sobreviviam em duríssimas condições; do outro, os abastados agricultores de outras tribos, que viviam a explorar e a espoliar aqueloutros. No fundo, entre eles estava apenas a ocorrer, embora com armas mais mortíferas do que outrora, um conflito centenário pela posse da mencionada terra.

Mas em Owo, grande cidade no sudoeste da Nigéria, bem longe, portanto, da zona migracional dos fulani, onde é que estes haveriam de querer pastorear os seus rebanhos? Inspirar-me-ei, para ponderar esta questão, na já anotada quase equivalência entre o número de habitantes do Porto e de Owo: será que seria no analogado, nesta última urbe, ao Parque da Cidade, na Foz? Ao Jardim Botânico, no Campo Alegre? Ao parque de São Roque, nas Antas? Ao Parque Urbano da Pasteleira, no local com o mesmo nome? A mítica explicação, tão pantanosa como comum, não se está a dar bem com a verdade, e, talvez por isso, quem foge de pântanos não tenha lá ido.

Estimo que é altura de se admitir que, embora os fulani não sejam todos muçulmanos, são-no em extrema maioria, e que, por isso mesmo, não deixaram de, (in)voluntariamente, se associarem às pretensões armadas de tantos grupos bélicos islâmicos que desejam uma enxurrada de sangue cristão na Nigéria. Sim: há, nisto tudo e sem recear estar a enveredar por algo excessivamente simplista, uma quota parte de sérias motivações religiosas. Razões essas, possivelmente erróneas, face a uns textos islâmicos tão complexos, quão frequente e facilmente distorcidos um pouco por todo o Mundo (talvez devido à impreparação teológica de muitos dos líderes religiosos que os comentam, expõem e explicam).

Dou apenas um exemplo. Em Abril de 2022, o meu muito estimado (também pelos seus hábeis passos dados juntamente com o Papa Francisco) imã da mesquita de Al-Azhar, Ahamad al-Tayyeb (alguém, pois, com responsabilidades na Ummah sunita quase análogas às do Papa para com o Cristianismo Católico), disse que o islão nunca usou de violência para se expandir no decurso do século VII. Isto é como se Francisco dissesse que os cristãos nunca sofreram perseguições ao longo da sua existência, e, como sabemos, a História, quando ela mesma, não costuma ser benévola com quem ignora ou manipula sistematicamente a história.

De qualquer modo, se alguém, com tamanha responsabilidade, se equivoca num tema tão sério, como já parece não ter sido a primeira vez (neste caso, acerca da legitimidade dos maridos baterem “preventivamente” em esposas “arrogantes”), nem sequer a segunda (agora, a respeito do facto de que quem abandona o islão deve ser morto), o que esperar da qualidade dos mais simples e desconhecedores lideres e dawaistas islâmicos? Talvez sejam, com todas as consequências lamentáveis que podem daí decorrer, pessoas equivocadas por outras pessoas equivocadas.

Há igrejas a serem destruídas e sangue a escorrer para o chão, e daí a clamar atenção e ajuda, no genocídio que está a ocorrer na Nigéria. Até onde vai a cumplicidade do governo com isto? As palavras do mesmo a nível nacional, com promessas e lamentos, têm sido muitas. Legiões mesmo. Mas o que pensar quando, como atestou David Curry (diretor da associação de apoio aos cristãos Open Doors), se envia militares para protegerem as igrejas com armas sem munições? Quando a polícia, e até o exército, se manifesta cúmplice com algumas dessas matanças a cristãos, mediante recuos e marasmos estratégicos?

Eu gostava que isto não continuasse. Gostava que mais pessoas estivessem cientes e falassem disto. Mas não creio que se queira fazê-lo. Ninguém quer ferir sistemas religiosos frágeis. Ninguém quer admitir que há apenas uma ténue linha que separa os “bons” dos “maus” seguidores desses sistemas religiosos. Ninguém quer ver, e solidarizar-se com as vítimas, pois trocaram-se os “valores morais” pelos “valores culturais”. Pois somos de tal modo tolerantes relativamente a certos temas, que aceitamos não declarar as nossas convicções a respeito dos mesmos, para, assim, não ferirmos a sensibilidade de quem está a cometer selvajarias.

Sou cristão católico. Sou-o com orgulho. E que felicidade, tão imerecida para mim, que é sê-lo. Sei que as minhas palavras não chegarão a quase ninguém e, logo que vierem a público, tornar-se-ão apenas num atol no meio de um oceano que as submergirá rapidamente. Mas, por mais que as mesmas possam ser consideradas um mal, serão um franco denunciar do mal.

Não sou inimigo de ninguém, pois, como Jesus, procuro ver as pessoas e as situações em profundidade. Odiar a alguém é matá-lo e, assim, é a maior heresia prática do Cristianismo. Procuro, pois, amar a todas aquelas, e a ver Deus-Amor nestas; nos rostos humanos dilacerados, felizes, cheios de amor e de rancor.

Mas nada disto me impede de constatar o que se passa ao meu redor; o que se passa com aqueles que são a minha mesma carne; o que fazem e sofrem aqueles que são meus irmãos em humanidade deslocada. E sei que mesmo no deserto pode florir uma flor, conquanto não nos entregarmos ao mais perigoso desamor: o do se preferir a morte tida como vida; a comodidade incrustada; o desgosto de se viver com ousadia e, em consequência de um auto-bloqueamento do amor, se preferir viver no nada.

Já o disse, mas agora, que estou a terminar, repito-o: os cristãos estão a sangrar na Nigéria. Os cristãos estão a ser massacrados na Nigéria. Todavia, não se quer falar disso, muito menos ir a uma séria ponderação das causas mais profundas desse facto. E isto é, e será, uma tragédia crescente para nós – nós –, que cada vez mais somos obrigados a acreditar e a aceitar opiniões que sabemos que estão erradas e que são mentira.

Nós chorámos, e bem, Christchurch, mas, em geral, já não tivemos lágrimas para Owo. Isso grita e diz tudo acerca da nossa fraqueza, da nossa derrota como pessoas. E não haverá fármacos psiquiátricos suficientes para ocultarem os gritos da nossa consciência face a isso. Acordemos para as exigências do amor; peguemos na nossa enxerga de problemas banais diários e ponhamo-nos a caminho desse amor nas horas estreladas, ou desastradas, das nossas vidas.