Não são como Nós. São da margem Sul, são pobres, são do Norte, são gordos. Não são como Nós que somos do Restelo, somos abastados, somos daqui, somos bonitos. Não são como Nós.
Falam com sotaque, trocam os bês pelos vês, dizem “a gente temos”, e coisas como “fixe meu”, despedem-se ao telefone com um “tchau tchau tchau”. E usam palavrões a torto e a direito, como se fosse norma. Não são como Nós. Nós somos inteligentes, e bonitos, somos únicos, e exclusivos, somos gente de bom gosto, conhecemo-nos instintivamente uns aos outros. Porque somos poucos.
Não posso com Eles. Vestem um ar superior, usam um número invulgar de nomes de gente influente em cada frase, gabam-se ser de quarta geração da família tal, referem “en passant” a quinta no Alentejo e o bmw na garagem. Não posso com Eles.
Gostam de palavras caras, carregam no sotaque de Lisboa que não é coisa nenhuma (ou de Cascais, seja lá isso o que for), abusam do “tá bom?”, do “diga”, do “desculpe” a escorregar no “e”. E chamam-me tio a mim, que nem conheço o pai deles. Não posso com Eles. Acham-se inteligentes mas vogam de emprego em emprego, acham-se bonitos mas não se aguentam numa relação, pensam ter bom gosto mas ninguém lhes compra nada, conhecem-se uns aos outros mas são cada vez menos. O nariz no ar só lhes provoca constipações.
Não são como Nós. Quando eu era novo Nós mandávamos. O pai tinha a chave e só entrava quem ele queria. Agora é tudo xunga e entra qualquer pessoa. A minha casa é o meu castelo mas as muralhas caíram. Não são como Nós. À noite no Lux vestem-se como querem, deixam-nos entrar obrigando-nos a sair, nos restaurantes comem ostras com caviar e bebem champanhe que não foi feito para eles.
Não posso com Eles. Têm a mania que mandam, mas a empresa pertence-nos. Batemos-lhes à porta, não nos abrem a porta. Pedimos com bons modos, fazem-nos má cara. Pedimos-lhes contas, não têm com que pagar. Não posso com Eles. Brindo-lhes com amizade, respondem como quem não responde, talvez não apreciem a cor da minha pele ou talvez seja o sotaque das beiras ou a 7up que misturo no vinho de marca.
Não são como Nós. São negros, muçulmanos, são chineses ou estrangeiros. Levam de uma assentada os empregos que restam. Suspeito que são todos terroristas ou assim. Pois não são como Nós.
Não posso com Eles. Sou negro, muçulmano, sou chinês e sou estrangeiro. Trabalho com orgulho naquilo que lhes não convém. Olham-me com desdém, que até parece ser medo. Prefiro-os com medo. Pois não posso com Eles.
Eles e Nós: cada vez mais se cava o fosso, um fosso cada vez mais intransponível, e as consequências disso deveriam assustar-nos, levar-nos a construir pontes e não a erguer muros, a tentar entendê-los a Eles para que Eles nos entendam a Nós, mas não é assim, na verdade é cada vez menos assim. Será correcto dizer que o Mundo nunca esteve tão dividido, com tão difusas e inextrincáveis divisões que se torna difícil nomeá-las, e são tantas e todas elas produzem distância e a distância alimenta o ódio, e aos poucos vamo-nos odiando, lentamente, um profundo veneno que corrói o tecido social com que nos vestimos?
Há um tempo para tudo. Para o ódio e a virtude, para morrer ou viver. Houve um tempo distante em que eram maus os Outros, fossem Eles quem fossem. Detestávamo-los como gente diferente. Não eram como Nós. Eles retribuíam, ao desprezo com raiva. Não podiam connosco. E das suas famílias fazíamos escravos, e Eles das nossas faziam escravos. Às vezes, entre o ódio e a culpa cresciam flores. Julieta Capuleto e Romeu Montecchio. Teresa e Simão, amando-se de perdição. No cinzento da intolerância, o amor ou a bondade, cor vibrante da humanidade. A beleza do afecto. O dom da compreensão e dádiva ao Outro. Mas era só às vezes, e é de novo excepção. Nunca deixou de ser? Ou seria só Literatura?
O ódio e a culpa, que julgávamos arrancados dos nossos corações, instalam-se de novo, ou de lá não saíram: e são muros e muralhas, e é o Outro, qualquer Outro, objecto de opróbrio, vítima de discriminação, factor de zizania e divisão. Sentimo-nos diferentes, não somos como Eles, eles detestam-nos, forçam a entrada nos nossos paraísos protegidos, instalam no nosso seio o gene da nossa destruição. A Nossa e a dos Nossos.
Há um conto que li há muito, não me recordo onde, de quem era, que título tinha. Acabava assim e improviso sobre uma memória difusa:
“O silêncio caiu sobre a casa isolada. Depois de semanas de barulho, de mil vozes ululantes a gritar à morte, a quietude caiu como um refrigério sobre a pequena família de humanos que dali assistira, derradeira e assustada, ao ocaso da raça a que pertencia. Lá fora, uma imensa multidão aguardava a sua saída. Tinham-se rendido, acabados os mantimentos, e com eles a capacidade de resistência. Saíram de mão dada, mergulhando em filas compactas de milhares, de quem não esperavam senão impiedade. Mas foram andando, sem rumo nem esperança, rodeados pelos verdugos do seu povo. Um pequeno então perguntou a quem o segurava pela mão, “quem são eles?”, ao que o outro respondeu “são humanos, filho, os últimos, em tempos povoaram a terra”. “São tão esquisitos, pai”, comentou o pequeno vampiro, condoído”.
“Não são como Nós, não posso com Eles”. Estas páginas, tal como as de tantos jornais e revistas, e blogs, posts, no FB, no twitter, nas infindáveis colunas de comentários, estão cheias de ódio, de preconceito, de maniqueísmo. Tornámo-nos intolerantes – ou nunca deixámos de o ser? Olhamos os outros como raças, e povos, e culturas, que existem pela nossa tolerância mas cuja ausência, a extinção, a passar-se, seria apenas uma fatalidade, objecto de futura curiosidade antropológica. Só Nós Somos eternos.
Crentes disso, alimentamos o estigma da intolerância. Vivemos tempos difíceis, maniqueístas, em que, como já aqui muito escrevi, o ovo da serpente eclode: racismo, ódio ao Outro, ódio do Outro por Nós. Um tempo a fazer lembrar outros de nihilismo, de guerra e morte. Vão dizer que exagero, claro, que pinto de negro um cenário cinzento, que nada se irá passar e a Humanidade prevalecerá, como sempre. Talvez, mas prefiro ser o feiticeiro que antecipa a desgraça, mesmo que ela não ocorra, ou talvez que possa ser evitada pela confluência do aviso de muitos feiticeiros, do que confundir-me com a mole imensa que contemporiza, aquiesce e silenciosa desliza para um novo abismo, de cuja profunda fauce nunca sairá. Nunca sairemos, nós e os que não são como nós.
Exagero, dirão. Mas os sinais são claros, do contínuo aquecimento do planeta às divisões que por todo o lado eclodem; dos atentados diários à interacção alheada da era dos telemóveis; do ódio reacendido entre as religiões do Livro; do relativismo de novo em alta; do fanatismo que violenta mulheres e as proíbe de existir como tal, vítimas mudas e invisíveis; da política que não logra libertar-se da tentação corruptora do poder; do nacionalismo exacerbado, que convoca todos os fantasmas com a linguagem do populismo e da demagogia, prometendo libertá-los, a multidões rendidas que não conheceram a sua face medonha (Guernica e o “trabalho que liberta”); do racismo puro e simples que não cede à homofobia serôdia que não cessa; dos pobres cada vez mais pobres num mundo cada vez mais rico (depois de décadas de recuperação, as desigualdades estão a aumentar, é um facto).
Talvez exagere. Mas quem diz que eu exagero, não exagera de menos?