A sociedade dos likes está a emergir de forma estonteante e a contaminar tudo e todos.
Esta sociedade poderá vir a adotar implantes visuais e dispositivos móveis que permitem, em conjunto, que todos possamos partilhar as nossas interações com terceiros – em boa verdade com quem quer que seja – numa escala de 1 (um) a 5 (cinco): 1 (um) para má interação a 5 (cinco) para muito boa interação.
As interações farão com que cada indivíduo possua um score e se apresente na sociedade com esse mesmo score (eu sou um score 2 ou eu sou um score 4,8 e isso fará toda a diferença). Passaremos a ser uma média (um score médio) móvel (à medida que nos vão avaliando e tudo, mas mesmo tudo o que seja interação, servirá para nos avaliar). Existirão desde os high flyers com médias de 4,5 para cima aos low end que terão scores médios muito baixos e a tender para zero.
O score contribui, assim, como rating com que cada qual se apresentará mas, também, como condição de acesso a uma série de facilidades: comprar casa com um desconto, por exemplo, ou mesmo aceder a uma casa num bairro, condomínio ou zona mais trendy implica, para além de tudo o mais, um score alto.
A atriz (Bruce Dallas Howard) encena muito bem este espírito na série Black Mirror (season 3, episódio 1), começando o episódio com a atriz a ser detentora de um score de 4,2. Para aceder a um desconto num apartamento de luxo precisa de um score social de 4,5. A atriz vive com o seu irmão que não parece mostrar grande interesse nos scores e neste sistema de ratings. Não passa de um score 2 com uma vida cinzenta em termos sociais e sem acesso a praticamente nada.
Isto dito, Lacie Pound (nome da atriz na série) quer mesmo comprar uma casa de luxo mas tem um handicap: a casa só pode ser vendida a pessoas com scores iguais ou superiores a 4,5. Para tal visita um consultor de ratings que sugere que consiga avaliações de high flyers que lhe possam granjear um grande impacto, assegurando, assim, a passagem de um 4,2 para um 4,5. Em consequência, Lacie tira uma fotografia de um boneco “de trapos” que tinha, em tempos, feito com a sua amiga de infância Naomi, detentora de um score muito elevado e que a poderia introduzir num círculo de amigos com scores também muito elevados (uso emocional com vista a obter uma classificação alta). A amiga reconhece o boneco fotografado e postado nas redes sociais e, pelo dispositivo móvel de classificação, atribui a Lacie um score elevado. Os contactos (perdidos) entre as duas (afastadas há anos) são retomados e a amiga acaba por convidar Lacie para fazer um discurso no seu casamento. Esta oportunidade daria a Lacie uma avaliação elevada de todos os presentes e, consequentemente, a ascensão a um score médio superior ao 4,2 da altura e, possivelmente, a passagem ao 4,5 e a eventualidade de comprar uma casa de luxo.
O episódio da série segue depois por entre inúmeras peripécias mas, desde a possibilidade de ascender a um score de 4,5, a quantidade de acontecimentos sucessivos e negativos seguintes reduzem o score para zero ou próximo. No final, ao chegar ao casamento, já a contragosto da amiga por sabê-la com um rating bem mais baixo, Lacie será classificada de forma negativa pelos convidados e, de descida em descida, o seu score médio passa a 0 (zero), concluindo detida pelos impropérios lançados. Ora nestas circunstâncias, e pelo ocorrido, os implantes visuais são retirados, o mecanismo de avaliação retido e Lacie aprisionada.
Já presa, e sem rating, sem aparelhos de avaliação e feedback, sem mecanismos visuais acessórios, Lacie envolve-se numa troca verbal com um outro recluso que nos conduz ao final do episódio em ascendente de palavreado, palavrão e insulto que, naquele momento, acaba por conceder a liberdade (apesar de presos) a quem, efetivamente, não tem que se preocupar com mecanismos de avaliação. Ganham, finalmente, a liberdade de expressão, perdendo a liberdade de movimentos.
Há várias ilações e conclusões possíveis a partir deste episódio. Ressalto duas.
A primeira grande conclusão retirável a partir da prisão aos likes e não likes das redes sociais é a de que, ao evoluir para um extremo, esses mesmos likes e não likes são condição necessária, mas não suficiente, para aceder a bens e serviços que de outra forma estariam fora do alcance dos indivíduos. Ou seja, os mecanismos de avaliação propiciados pelas redes sociais garantem um score médio a cada pessoa e a própria pessoa terá de o saber manter adotando comportamentos coreografados, plásticos e despropositados que o levarão a permanecer ou ascender a uma condição ainda melhor por melhoria do score. Isto para dizer que estariam lançadas as bases para uma sociedade totalmente artificial com base em comportamentos coreografados (borderline) em frente a terceiros ou sempre que estivéssemos a ser observados. Os comportamentos mais normais ocorreriam em ambientes fechados e sobretudo sem interação social.
Para quem leu o “Future of Jobs Report” (2016) do World Economic Forum, onde se faz a apologia genérica aos soft skills necessários para 2.020, a perplexidade pode aumentar. Vejam-se os skills desejados, por ordem decrescente de importância: (1) Complex Problem Solving; (2) Critical Thinking; (3) Criativity; (4) People Management; (5) Coordinating with others; (6) Emotional Intelligence; (7) Judgement and Decision Making; (8) Service Orientation; (9) Negotiation; (10) Cognitive Flexibility.
Se se interpreter o Complex Problem Solving, o Critical Thinking e o Judgement and Decision Making como substancialmente conexos a soft skills e longe dos instrumentos mais analíticos (que também incluem sendo, hoje em dia, frequentemente ignorados), apenas aparece em décimo lugar, leu bem, em décimo, a primeira competência mais hard e mais cognitiva. Tudo o resto são competências brandas. Ora se os indivíduos usarem estas competências para teatralizarem comportamentos e os coreografarem poderemos ter tudo dito. A farsa, da entrevista de emprego à amizade, das relações mais simples às mais intrincadas, tudo passa por um interesse que tem como retorno a avaliação e a promoção social que permitem a ascensão a scores elevados e benefícios em conformidade.
Portanto, competências brandas em redes sociais gerarão apenas artificialidade, bipolaridade e comportamentos coreografados. A sociedade tornar-se-á, perdoem-me o termo, uma palhaçada – como em muitos casos já é – de pontos e bonificações pelas aparentes virtudes. E com isto emerge todo um outro modelo económico e social que se pode designar por economia dos likes.
A segunda grande conclusão é a que decorre de estarmos permanentemente ligados. Se associarmos o que foi dito na primeira conclusão a uma cada vez maior propensão para estarmos ligados (smartphones e o que seja) o resultado só poderá ser o de nos tornarmos, a prazo, todos freaks. Alguém pagará a alguém, algum dia, bom dinheiro para poder ter uma conversa aberta e franca olhos nos olhos. Presumo, com isto, que as profissões que não estarão certamente em lista de extinção possam ser a de psicólogo clínico e a de psiquiatra. Claro está, em fortíssima ascensão estará também a profissão de consultor para as redes sociais.
(*) – descer em vôo picado
Professor Catedrático, NOVA SBE – NOVA School of Business and Economics