Vou começar este texto exatamente como o vou acabar: não é possível que o que está a acontecer no Afeganistão não cause comoção. Comoções de várias ordens. A aflição das pessoas comuns a tentarem sair do país, a ideia de que as mulheres voltarão a uma existência miserável e até, para alguns de nós, aquela espécie de fuga mal orquestrada dos norte-americanos, que despertou em muitos que viveram nos anos 1970 memórias de Saigão e de um dos períodos mais conturbados da história norte-americana.

No entanto, a comoção não é boa conselheira, muito menos quando se tenta pensar em questões políticas com várias dimensões, incluindo potenciais crises humanitárias. O que se segue são breves notas que distinguem dois problemas que, apesar de interligados, não são o mesmo. Primeiro analisa-se a inevitabilidade da retirada. Depois a retirada em si, cujos danos podiam ter sido evitáveis.

  1. O Afeganistão não foi uma guerra da escolha. Foi a região onde foram treinados e onde se refugiavam os operacionais da Al-Qaeda que perpetraram os ataques do 11 de Setembro. Era politicamente inviável não fazer uma tentativa de destruir o safe haven de quem tinha levado a cabo um ato de terror que abalou o mundo mas, principalmente, a América e a sua segurança.
  2. A posteriori, um conjunto de comentadores argumenta que devia ter sido um ataque cirúrgico. Mas em 2001 não se pensava assim. Estava enraizada na mentalidade ocidental (não me refiro só aos EUA), que uma invasão implicava uma reconstrução, se possível, aproximando os povos invadidos aos hábitos e instituições ocidentais. Acreditava-se que a democracia era um direito universal e havia poder de sobra – os Estados Unidos eram a única potência no sistema internacional, sem vislumbre de mais nenhuma – para que invasores assumissem as suas responsabilidades.
  3. Rapidamente, e também devido à intervenção no Iraque, estas guerras tornaram-se guerras malditas entre a população norte-americana. Percebeu-se que estavam mal planeadas e não havia hipótese de as vencer, pelo menos, politicamente. Barack Obama, Donald Trump e Joe Biden foram eleitos com o mandato de acabar com elas. Os dois primeiros não conseguiram, apesar de Trump se ter empenhado num acordo com os talibã para tentar evitar o desastre a que agora estamos a assistir.
  4. De Bush a Biden, o mundo mudou consideravelmente. Já não estamos no momento unipolar em que os EUA eram a única potência no sistema internacional. Obama iniciou um retraimento estratégico que cada presidente a seguir tem gerido como acha mais eficiente. Em competição com a China e com a pressão da opinião pública, a saída do Afeganistão era inevitável. E o resultado seria o mesmo, independentemente do quando. Se vinte anos não foram suficientes para escudar o povo afegão do avanço talibã, mais cinco ou dez não fariam grande diferença.

Se não tenho muitas dúvidas da inevitabilidade do fim deste conflito – Biden explicou bem as razões no discurso à nação sobre o assunto – é preciso acrescentar um conjunto de pontos relevantes.

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  1. A retirada foi muitíssimo ineficiente. Apesar de o presidente norte-americano ter afirmado que os afegãos estavam prontos, treinados pelas forças norte-americanas, para fazer face ao avanço dos talibãs, a realidade prova exatamente o contrário. Ainda que seja cedo para assacar responsabilidades, parece uma falha estrondosa dos serviços de informação e dos responsáveis pelo planeamento desta retirada. Os talibãs avançaram pelo Afeganistão quase sem resistência e parecem ter apanhado desprevenidos americanos, aliados e organizações internacionais. Uma grande potência que tem pretensões a ter uma palavra a dizer no mundo, não pode, simplesmente, ter uma inteligência que não funciona.
  2. O desespero dos afegãos, a fuga atabalhoada dos estrangeiros e a tomada de poder pelos talibãs transformaram, por muito tempo, a imagem internacional dos Estados Unidos. Visto de qualquer ângulo é uma pesada derrota (não venceram a guerra política, nem souberam sair de forma ordeira), que muito dificilmente pode ser explicada sem fazer uso da palavra incompetência.
  3. Os aliados dos norte-americanos ficam em apuros. Num momento em que Biden tenta reconquistá-los, este tipo de posição pode prejudicar muito esta reconciliação. Especialmente porque, tudo indica, a retirada gerará uma crise de refugiados que tende a atingir a Europa, especialmente vulnerável a este tipo de problema.
  4. O espaço de influência afegão já estava a ser ocupado pelo Paquistão, a China, a Rússia e mesmo pelo Irão, que se esforçam por branquear a imagem dos talibãs perante o mundo. O Ocidente tem dado uma ajuda. Por razões de culpa; a ideia dos anos 1990 e 2000 que era preciso deixar os povos melhor do que quando se chegou ainda tem muita força entre a esquerda norte-americana e europeia, que quer apaziguar os seus fantasmas.
  5. A direita norte-americana tudo fará para que este seja o momento definidor da presidência Biden, agravando a situação da polarização interna e a fraqueza relativa internacional dos Estados Unidos.

A comoção com que vemos o desenrolar da tragédia afegã nas nossas televisões é confrangedora. Não é possível ficarmos indiferentes à torrente de pessoas que quer fugir e à sorte das mulheres a quem os talibãs prometem salvaguardar os direitos humanos “dentro da lei islâmica”.

Mas se analisarmos o que aconteceu nos últimos vinte anos, há dois momentos: por um lado, aquele em que Biden toma ou leva a cabo a decisão já tomada por Trump de retirar do Afeganistão. E essa decisão está certa. Não só porque praticamente todas as tentativas de reconstrução de Estados alheios só pioraram situações que já eram más (ver, por exemplo o excelente At War’s End, de Roland Paris), como já não era tolerável, para os americanos, continuarem numa guerra que não conseguiam vencer vinte anos depois.

Por outro lado, o segundo momento – a retirada – não podia ter corrido pior. A palavra “Saigão” saiu dos anais da História para trazer velhos fantasmas e novas (e velhas) divisões. Demostrou a enorme inaptidão dos Estados Unidos para liderarem o mundo, num momento em que Washington precisa desesperadamente de credibilizar a sua liderança. Ficámos a sentir que ali se perdeu qualquer coisa de essencial, que pode bem ser irreparável.