Chamo a atenção aos caros leitores que vou escrever já a seguir sobre o ilustre governo de Portugal e não, como por momentos pode parecer, sobre uma agremiação circense da Mongólia Interior. Ou sobre um grupo de hippies que se isolou da sociedade numa quinta numa zona remota da Índia e se autorregula recorrendo a rituais xamânicos.
Começo, feita a ressalva necessária, com pompa. A saber de um feito verdadeiramente irrepetível, avassalador, histórico: a inauguração de uma estação de metro, esse meio de transporte revolucionário que foi, como se sabe, introduzido no país há meia dúzia de meses pelos bons préstimos do tempo novo da geringonça. Só foi pena o governo não dar – como a espetacularidade da ocasião merecia – tolerância de ponto para o país celebrar em uníssono a abertura de uma nova estação de metro na Reboleira.
Mas o ilustre governo proporcionou-nos muito mais (e já era tanto) do que celebração. Na pessoa do primeiro-ministro, senhor que conhece o futuro das alterações climáticas, a evolução tecnológica das energias limpas e da indústria automóvel e, sobretudo, o que é bom para cada um de nós, fez-nos saber que temos de nos habituar a viver sem os carros. Se fosse alguém malvado de direita lá haveria gritaria por termos um governo a querer tirar os confortos que o capitalismo, perdão, a intervenção socialista do estado, e o enriquecimento das populações proporcionam. Mas assim foi só o pm paternalista a dar-nos bons conselhos sobre ‘moblidade [sic – eu não tenho culpa da peculiar dicção do pm]’.
Logo a seguir – e mostrando com atos a sua titânica preocupação com a poluição provocada pelos combustíveis fósseis e suas consequências no aquecimento global, bem como o seu amor pelo uso de transportes públicos que tanto aconselhou aos autóctones dos arrabaldes lisboetas – o pm sacrificou-se em prol dos seus princípios sobre a dita ‘moblidade [sic]’. Em vez de viajar confortavelmente em executiva – e gratuitamente na parte da viagem na TAP – até Atenas, António Costa acedeu ao enorme desconforto de se fazer transportar num Falcon – com custo horário de vários milhares de euros – para visitar a sua alma gémea política, o austerista-mor Tsipras.
Para mostrar o desconforto a que se sujeitou para ser coerente com os seus sermões aos automobilistas portugueses, Costa até se fez fotografar na minúscula cabine do Falcon. Na verdade tão minúscula que o que mais sobressaía era a protuberante barriga do pm aprisionada num casaco de malha justíssimo. Por momentos confesso – eu sou dada a estes maus sentimentos, não há nada a fazer – que me lembrei daqueles padres renascentistas gorduchos que a Reforma atacou, carregados de anéis nos dedos sapudos, que pregavam o ascetismo aos famélicos camponeses das suas dioceses. Mas – descansai – rapidamente se abateu sobre mim o respeito devido ao chefe de governo e se dissiparam as desconfianças de hipocrisia.
Depois tivemos o ministro da educação a criticar o trabalho camarário de Costa, ao reconhecer que Lisboa não está preparada para esse fenómeno atmosférico deveras exótico e inesperado que dá pelo nome de chuva. O mesmo ministro que viu um secretário de estado demitir-se porque – diz-se – queria manter na sua tutela pessoas nomeadas pelo anterior governo, enquanto o ministro da educação insistia em nomear socialistas. Nada que se vá esclarecer, porque a esquerda não vê com bons olhos prestar contas e recusou enviar o ministro à comissão parlamentar responder às perguntas dos representantes dos eleitores.
Houve o amigo Lacerda Machado, que está para Costa como, sem a parte dos afetos e dos desejos, Madame de Pompadour estava para Luís XV. O amigo Lacerda é um facilitador – essa nova categoria política – e tem o ouvido do primeiro-ministro. Pompadour participou na reversão de alianças que maus ventos trouxe a França, e Nancy Mitford prosaicamente afirmou que a qualidade da ação política de Pompadour não era de modo a entusiasmar as feministas. O amigo Lacerda, se insistir em trabalhar (i.e., em facilitar) para merecer os seus 2000€ mensais, em vez de confortavelmente se entregar ao ócio, provavelmente ficará nos anais da História Negra da Amizade.
Há mais. O acordo do BPI, em que o governo, sabe-se lá por que razões (dado ser assunto entre privados), entendeu meter o bedelho, foi anunciado com pompa (outra vez) e caso claro da obrigação do estado intervir na economia. O acordo magicado pelo governo (e PR) anunciado ao som de aplausos afinal não se concretizou, mas também não faz mal que o governo tinha preparada uma lei para favorecer o banco que pretende comprar o BPI, e agora em vez de entregar parte da banca a Angola quer fazer pirraça aos angolanos.
Do ministro da economia e dos combustíveis mais baratos nas zonas fronteiriças tenho objeções de consciência e de estética a comentar.
Para finalizar, o parceiro geringoncial BE fez essa seminal proposta para a elevação da condição feminina que é mudar o nome sexista do cartão de cidadão. O governo veio a correr aceder – que há que pagar os apoios. Ora bem, eu concordo que o nome do cartão de cidadão é machista. Substituiu algo que tinha um nome funcional, não sexista e de estética razoável (‘bilhete de identidade’) pela alusão à cidadania (saltem de alegria). Mas tal como não tenho paciência para quem quer criar a horrível palavra ‘presidenta’ quando o substantivo ‘presidente’ é de género neutro (e mais bonito), também não gosto de mudar os símbolos da história. E o nome ‘cartão do cidadão’ é um ótimo símbolo dos tempos socráticos em que foi criado: possidónio, pretensioso, a armar ao moderno mas que poucos anos depois já se vê que foi mal pensado, se não mesmo ofensivo. É manter e lembrar.
O melhor? Tivemos tudo isto em pouco mais de uma semana e o governo da geringonça ainda não tem seis meses.