O primeiro-ministro britânico está de saída. Pude comprovar no tempo em que vivi por terras inglesas que Boris Johnson era a alma da festa. O seu talento eleitoral é inegável e traduziu-se na maior percentagem de votos nos conservadores desde as vitórias históricas de Margaret Thatcher. Hoje o seu descrédito é quase total, mesmo no seio do próprio Partido Conservador, que acabou por forçar a sua demissão. Mas Boris Johnson não sai imediatamente. A sua vontade de ficar é muita e os que poderiam forçar uma saída imediata estão ocupados a disputar-lhe o lugar. Sobretudo, é errado ver nesta mudança de líderes a certeza de que as relações britânicas com a União Europeia irão melhorar.

Queria ser, mas não foi Churchill

O primeiro titular do cargo de primeiro-ministro britânico – Sir Robert Walpole – terá assumido funções em 1721. Pelo menos é o que diz a tradição, central em vários aspetos de um sistema constitucional britânico, quiçá a precisar de algumas reformas. Desde essa altura que o chefe do governo britânico tem de ter a confiança do parlamento. E Boris perdeu-a, inclusive a do seu próprio grupo parlamentar.

Também não parece que Boris se vá destacar na lista de mais de setenta titulares do cargo nos últimos três séculos em que reina supremo Sir Winston Churchill, declaradamente o modelo de Johnson. Mas se partilhava com o mais famoso estadista britânico o talento verbal e o sentido de humor, Johnson ficou-se pela imitação do estilo churchilliano, sem perceber o essencial, por exemplo a importância de uma equipa forte e capaz de lhe fazer frente como aquela de que Churchill se soube rodear.

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Depois de assumir o cargo em 2019, Boris Johnson não se cansou de quebrar precedentes e, até leis, tendo sido o primeiro chefe do governo britânico multado pela polícia. Pode ele reclamar algum legado?

Como legado, uma missão impossível

Desde 2016 que Johnson dominou a agenda política britânica, e promoveu uma verdadeira revolução na inserção internacional da Grã-Bretanha, ao liderar a campanha pela saída britânica da UE. É justo sublinhar que Boris tinha declarado publicamente como seu grande objetivo uma missão impossível – fechar definitivamente a página do Brexit com rápidos e significativos ganhos económicos para uma Grã-Bretanha mais global. Esta sempre foi uma missão impossível, e mais ainda com o impacto da pandemia e da guerra. E é ela que Johnson lega aos seus sucessores.

Missão impossível porquê? Porque, como o próprio Johnson reconheceu, a Grã-Bretanha não pode mudar a sua geografia europeia. Ao nível da geoestratégia o Reino Unido é um arquipélago europeu. É por isso que a história britânica sempre teve marcas de insularidade, mas também uma forte dimensão de permanente envolvimento, voluntário ou involuntário, com o resto do continente europeu. Há séculos que é claro para sucessivas gerações de líderes britânicos que a liberdade e segurança do seu reino insular implica combater o risco de uma grande potência imperialista dominar pela força o continente europeu. Foi assim de Filipe II e Napoleão até Estaline, sem esquecer Putin e a sua recente invasão da Ucrânia, em que Londres se destacou pelo apoio precoce a Kiev.

Também na dimensão geoeconómica a Grã-Bretanha é um país europeu. É muito difícil a qualquer país escapar às vantagens e desvantagens da região envolvente. A ideia de ganhos imediatos para uma Grã-Bretanha mais aberta e desregulada chocou com a realidade de que a abertura ao resto do mundo não é fácil, nem isenta de condições. Sobretudo não garante um crescimento explosivo e imediato de negócios com regiões distantes. Até muitas das regras comunitárias – das ambientais às de proteção do consumidor – parecem, afinal, ser desejadas pelos britânicos. O grau de divergência entre a Grã-Bretanha e o resto da Europa sempre foi manifestamente exagerado pelos defensores do Brexit, mas poderá ter-se tornado um artigo de fé para um setor importante dos conservadores britânicos.

O que se segue?

O Brexit, a gestão das relações do Reino Unido depois da sua saída com o resto da UE, é uma história sem fim de curto prazo a exigir constantes negociações. Boris pode legitimamente gabar-se de ter conseguido impor, como prometido, uma versão extrema do Brexit. O preço dessa vitória tem sido mais dificuldades económicas, mais negociações, e o previsível e perigoso agravamento da questão irlandesa. A solução preferida por Johnson para resolver este problema – quebrar o protocolo que criou um estatuto especial para a Irlanda do Norte, por ele negociado e defendido – veio agravar o seu descrédito junto dos parceiros europeus. Alguns chegaram a comparar o aparente desprezo do governo britânico pelo respeito das obrigações do direito internacional à postura de Putin.

É impossível as coisas piorarem com a saída de Boris? Talvez, uma mudança de liderança abre a possibilidade de uma certa renovação no relacionamento, sobretudo quando se trata de um líder tão desacreditado. Mas há que reconhecer que nem tudo depende dos líderes na política internacional. Há dificuldades estruturais na gestão das relações entre a UE e a Grã-Bretanha. E só saberemos quem será o novo líder conservador britânico a 5 de Setembro. Entre os candidatos viáveis neste momento há um forte contingente de entusiastas do Brexit – de Rishi Sunak até Liz Truss, de Penny Mordaunt até Kemi Badenoch. Entre os mais moderados só restou Tom Tugendhat, o único que se opôs ao Brexit, mas não parece ter reais hipóteses de sucesso. Portanto, teremos de esperar para ver. Seria bom ter pelo menos maior previsibilidade neste importante relacionamento. Uma melhoria é possível, mas não é inevitável. Seria fortemente desejável – tensões nas relações entre a Grã-Bretanha e os 27 nada contribuem para a coesão do Ocidente com uma guerra às portas.