O Presidente Marcelo terá respondido com franqueza a uma pergunta, e não há dúvida de que criou um facto político. Eu aprecio a franqueza nas relações pessoais. Na política, com implicações e custos para todos, prefiro uma gestão cuidadosa das palavras e dos silêncios, sem mentiras, claro. Pode ter sido uma opção deliberada do nosso grande comunicador, mas se foi assim colocou problemas ao governo, que deveria ter sido consultado. E, sobretudo, desviou atenções do foco desejável nos cinquenta anos do 25 de abril, que, aliás, tem lições valiosas para dar a este respeito.

A escravatura na história e na moda

A vantagem de já não vivermos numa ditadura é que qualquer período ou facto histórico deve poder ser debatido livremente. Isto também significa que não temos de o fazer de acordo com uma cartilha dogmática como a da ideologia woke, uma moda importada dos sempre terríveis, mas irresistíveis, Estados Unidos. Como historiador sou o primeiro a defender a importância de conhecermos e debatermos o passado. Infelizmente concordo com um dos nossos maiores especialistas da história da escravatura que talvez não haja assim tantos interessados nisso, a julgar pela quantidade asneiras históricas em que se insiste a propósito e despropósito da justificação para as ditas reparações.

Podemos começar por nos chocarmos com o facto histórico de que durante grande parte do passado da humanidade a escravatura ter sido uma realidade aceite pela maioria das pessoas. Não era criticada por muitos, como se diz, mas raramente e por poucos, geralmente mais lamentada como tragédia ou denunciada nos ditos excessos, e não questionada na sua essência. Tanto era assim quanto a escravatura foi legal durante a maior parte da história e na maior parte do Mundo. E não podemos deixar de mencionar um facto histórico inconveniente para os que defendem uma agenda ideológica de culpa coletiva exclusiva do Ocidente. O abolicionismo só ganhou força política decisivo nos países ocidentais, a partir do século XVIII. E foram os Estados ocidentais a ter uma ação decisiva, custosa, global contra o flagelo da escravatura legal.

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Se formos sérios na condenação da escravização de seres humanos em nome dos seus direitos e da sua dignidade essa rejeição tem de ser universal e não racista. Claro que todas as formas de escravatura têm as suas especificidades. Mas todas partilham a mesma indignidade fundamental. No que é um escravo europeu forçado a remar nas galés argelinas é menos vítima do que um escravo africano forçado a apanhar algodão no Sul dos EUA? No que é uma europeia escrava sexual num harém otomano é menos vítima do que uma africana escrava sexual num harém árabe? E sendo assim porque é que as exigências de reparações só surgem relativamente a Estados europeus ou aos EUA? É verdade que muita da riqueza criada pelo tráfico de pessoas escravizadas no império britânico ficou nos EUA, mas da mesma forma no império português muita desse riqueza esclavagista ficou nas mãos de elites residentes no Brasil. O Estado brasileiro, que muito expandiu a escravatura depois da independência, já pagou reparações aos descendentes dos escravos? E como se identificam as vítimas a quem pagar? O Brasil tinha uma ampla elite mestiça que também foi proprietária e exploradora de escravos. Muitos portugueses pobres chegaram ao Brasil depois de 1822, e alguns até foram usados, depois de 1889, para substituir os africanos escravizados. E os Estados africanos? Os reinos africanos foram os grandes vendedores de africanos escravizados aos comerciantes europeus. A maioria desses reinos resistiu ao fim do tráfico e manteve a escravatura até mais tarde do que os Estados europeus. Nada disto invalida que o Estado português possa lamentar e pedir desculpa pelo seu papel neste terrível tráfico de pessoas, como já fez. Mas certamente nada disto obriga a adotarmos o modelo tóxico de reparações. Não concordam? Só mostra que falar em reparações pelo passado não vai deixar ninguém satisfeito.

A história trágica das reparações

As reparações de guerra até são relativamente mais simples. São o preço da destruição material causada pelo Estado inimigo num período limitado. O exemplo mais famoso deste tipo de reparações foi o imposto à Alemanha a seguir à Primeira e à Segunda Guerra Mundial. Não correu bem. A tentativa de o fazer depois da Primeira Guerra Mundial minou a viabilidade económica da nova democracia alemã. Como o famoso economista Keynes previu, logo em 1919 em The Economic Consequences of the Peace (spoiler alert: não foram nada boas). As reparações envenenaram as relações da Alemanha com as potências vizinhas. Foram uma dádiva para a propaganda de populistas nacionalistas como os Nazis. Contribuíram para uma nova guerra mais destrutiva.

Se houve um império brutal, homicida, escravizador foi o da Alemanha nazi. A tentativa de obrigar os alemães a pagar justas reparações de guerra, depois de 1945, logo se mostrou insustentável. Começou-se com 300 mil milhões e acabou-se a reduzi-las, em 1952, a 3 mil milhões de dólares. O pagamento de valores considerados justos pelas vítimas significaria a destruição da economia alemã. O pouco que foi efetivamente pago ainda hoje causa reclamações de países como a Polónia que consideram que devia ter sido muito mais. São bons exemplos de como as reparações longe de apaziguarem conflitos tendem a eternizá-los.

As lições do 25 de abril sobre o tema das reparações

A história também nos ensina que ruturas como a do 25 de abril de 1974 não se fazem sem custos. O golpe militar pôs fim a uma ditadura fundada por outro golpe militar e teve várias causas. Mas o desgaste de mais de 10 anos de guerras em África foi decisivo. Custou dezenas de milhares de mortos nas guerras em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, e muitos mais ainda nas guerras civis que se seguiram nalguns casos à independência. Custou milhões de africanos deslocados à força antes da independência, e outros tantos, brancos e não só, depois das independências, e que deixaram tudo para trás. Vamos também pagar reparações a todos eles?

Todo esse chamado “contencioso” foi posto de lado em nome da normalização de relações entre Portugal e as antigas colónias entre 1976-1983, de um modelo de cooperação voluntária e investimentos de interesse mútuo. Vamos agora a respeito da escravatura esquecer esse exemplo de viragem de página em relação a custos mais recentes e a vítimas ainda vivas?

Podemos certamente tentar transformar esse marco negativa na nossa história partilhada num novo pretexto para cooperação pela positiva no campo dos museus, do ensino, da investigação. Desde que não seja para vender uma versão falsa e politicamente correta do passado. Insistir no tema das reparações será dar força a populismos e polarizações tóxicas. Será dar uma prenda à propaganda agressiva de potências autocráticas cada vez mais violentamente revisionistas contra os Estados que ainda vão procurando defender os direitos humanos no Mundo. Será, sobretudo, insistir em reduzir os Estados africanos e outros do Sul global a eternas vítimas. Quando devem ser vistos como a parceiros de pleno direito com que cooperamos e em que investimos por interesses partilhados, não por qualquer sentimento de culpa ou obrigação. Insistir no tema das reparações é pior do que um erro, são vários. É possível que a caixa de pandora esteja aberta, precisamos do bom-senso de estadistas para tentar fechá-la, mas parecem escassear nos tempos que correm.