O artigo de hoje – exceptuando, é claro, o post scriptum – é um pouco uma revisitação de alguns dos aspectos que mais me ocuparam o espírito desde a invasão russa da Ucrânia, e isso logo desde um artigo publicado a 24 de Fevereiro, dia do início da invasão, mas obviamente escrito ainda a 23. Os tópicos são organizados de forma contínua a partir do fio condutor da ideia de má-fé. Eles têm menos a ver com os desenvolvimentos da guerra do que com a recepção, caseira e não só, dos argumentos dos dois lados. Mais precisamente, interessou-me, desde o princípio, perceber o tipo de argumentação daqueles que, de modo diverso mas convergente, exprimiram simpatia pela posição de Putin e manifestaram desprezo pela de Zelensky e dos ucranianos.
2022 foi o ano da guerra, uma guerra de conquista, à antiga, em plena Europa. Houve agressor e um agredido, um invasor e um invadido. O invasor foi brutal, não hesitando perante nenhuma selvajaria nem nenhum massacre, tratando o invadido como uma raça inferior que devia, se necessário, exterminar. O invadido foi heróico, conseguindo resistir a uma força muito superior e infligindo-lhe, no plano militar, várias derrotas importantes. De um lado, a barbárie; do outro, o desejo da civilização. De um lado, a Rússia; do outro, a Ucrânia. De um lado, Putin; do outro, Zelensky. Isto é o óbvio, aquilo que é manifesto, patente, tanto à consciência comum como àqueles que têm por obrigação pensar. Está perante os nossos olhos, salta aos olhos – fura os olhos, como dizem os franceses.
Esta evidência merece ser repetida as vezes que for preciso. E são muitas, porque, ao longo deste ano, ouvimos vozes que militantemente a negam, que se declaram por ela insatisfeitos. Tecnicamente, esta recusa da evidência é um traço próprio da má-fé, tal como Sartre a analisou. O homem da má-fé, com efeito, redefine a verdade como “evidência não-persuasiva”: “A má-fé captura evidências, mas encontra-se antecipadamente resignada a não ser preenchida por essas evidências, a não ser persuadida e transformada em boa-fé”.
É muito instrutivo ver o processo através do qual a má-fé se manifesta neste caso concreto, os meios através ela não se deixa persuadir pela evidência. O primeiro, e o mais decisivo, é a inversão da relação entre agressor e agredido. Assim, contrariamente às aparências, não foi a Rússia que agrediu a Ucrânia. Foi a Ucrânia, joguete dos Estados Unidos, da NATO, do Reino Unido e da União Europeia (ela própria um joguete dos Estados Unidos), que, provocando a Rússia, a obrigou a reagir, defensivamente, à provocação ucraniana. É como se se dissesse que fora Abel a matar Caim e não o inverso. O fundamento desta inversão repousa, como é bom de ver, naquilo que se poderia chamar o princípio da causalidade única. Há um único agente verdadeiro neste nosso mundo: os EUA, que contam com várias correias de transmissão. Tudo o resto é resistência a essa causalidade única, e esse estatuto garante uma inocência primordial. Num sentido profundo, Putin não pode ser acusado de invadir a Ucrânia, a sua atitude foi puramente reactiva.
Isto predispõe o homem de má-fé, que nega ser persuadido pela evidência, a, sem paradoxo, aceitar, em maior ou menor escala, a mentira organizada em sistema do regime autocrático de Putin, que prolonga um velho método da defunta União Soviética, que por sua vez se enraíza até em tradições czaristas. O discurso de Putin é todo ele uma teia sistemática de mentiras, até ao mais ínfimo detalhe. A mentira não é nele um acidente: é uma essência. Ela pode manifestar-se como uma alucinação do passado com intenção política, como no célebre artigo de 2021, cujo argumentário é, nos seus traços gerais, reminiscente do de Hitler para justificar as suas primeiras conquistas (a questão da língua, etc.). Ou como na utilização da expressão “operação militar especial” em vez de “guerra”. Ou de um número infinito de outras maneiras que seria ocioso enumerar. A atitude vem já dos dias imediatamente prévios à guerra. Um conhecido colunista do Expresso, por exemplo, poucos dias antes da invasão, garantia ainda a pés juntos que a Rússia não invadiria a Ucrânia, definindo a postura de Jens Stoltenberg como o mais execrável “belicismo”: seria uma espécie de “Dr. Strangelove”. E com que base? Putin havia declarado taxativamente que não tinha a mais remota intenção de invadir a Ucrânia. A aceitação inquestionada da mentira – e da mentira que salta aos olhos, tanto mais que tem uma longa história precedente – é o complemento natural da recusa da evidência persuasiva. É um pouco como nas teorias da conspiração: recusa-se radicalmente a crença partilhada pela comunidade para aceitar ferozmente um mecanismo explicativo absurdo sem qualquer assento na realidade observável.
Tudo isto – toda esta actividade ininterrupta da má-fé – é engendrado por um entusiasmo negativo em relação aos EUA. Mas não convém esquecer um elemento, por assim dizer, positivo, que é talvez mais poderoso do que o entusiasmo negativo: o amor fáctico pelo poder nu e brutal, de que Putin é um magnífico exemplo. Tal amor é uma paixão dominante em vária gente, da direita à esquerda. Ele releva do desejo de dominação em estado puro, um facto psíquico que, se formos freudianos, podemos fazer remontar ao inconsciente e associar a um desejo de omnipotência. E é afim de um ódio à democracia que habita, por vezes, os mais pacatos espíritos. Por mim, estou convencido que este aspecto é fundamental. O desejo de dominação é um facto psicológico bem atestado que não devemos em situação alguma subvalorizar.
Uma consequência directa deste amor pelo poder bruto é o desprezo pelo sofrimento humano, ou, pelo menos, a suspensão das emoções associadas à compaixão nos nossos corações. De uma certa maneira, é isto o mais chocante, o que mais vai contra os sentimentos comuns e as intuições morais justas que fundam a nossa concepção desinflacionada do bem e do mal. Como não padecer – sem ser pela proclamação de um abstracto e vazio amor pela paz – com o sofrimento e a derrelição dos ucranianos, sujeitos à pura barbárie da agressão russa? Há aqui, nesta colossal falta de empatia, uma miséria humana – não convém nestes casos ser macio com as palavras – que é o produto do amor pelo poder nu e cru.
Sob uma forma atenuada, esta paixão deixa-se ainda ver naqueles que se comportam como os amigos de Job se comportavam. Lembrar-se-ão que estes recomendavam a Job uma aceitação imitigada das suas provações. Os novos amigos de Job fazem a mesma coisa aos ucranianos. Mesmo quando não dizem que, para evitar o sofrimento, não deviam ter resistido à invasão russa, aconselham-nos a cedências de vária espécie, em nome de uma espécie de bom-senso espúrio.
Felizmente, os ucranianos não os ouvem. Eles dão-nos o mais sensível dos exemplos do que é o amor da liberdade e de algo que antes tínhamos uma notória dificuldade em perceber na sua plena dimensão: o patriotismo. Como se sabe, Deus, no fim do livro bíblico, reprova a atitude dos amigos de Job e manifesta a sua compreensão por este. Esperemos que Deus não tenha mudado de doutrina. A sobrevivência das nossas democracias está crucialmente em jogo.
PS. António Costa escolhe governantes calamitosos sensivelmente com a mesma frequência com que os oligarcas russos caem de janelas. Mas a sua roliça pose majestático-kitsch da merecidamente célebre capa da Visão indica que ele se encontra tão longe de admitir responsabilidade nestas trapalhadas como Putin de reconhecer publicamente a sua nos fatais voos dos seus concidadãos. Desta vez a coisa envolveu a TAP, que ele comprou com o nosso dinheiro por motivos de fervente patriotismo e que se prepara agora para vender pelos mesmos exactíssimos motivos. Pelo caminho, e com um igualmente indomável patriotismo, meteu por lá não menos de 3,2 mil milhões de euros dos contribuintes. Sugiro aos portugueses que façam uma vaquinha e que fretem o último avião da TAP e enviem Costa, os seus ministros e os seus secretários de Estado com uma passagem de ida sem volta para o Yemen, para aí “encerrarem este capítulo da sua vida profissional”, “abraçando agora novos desafios”. Ou então que peçam, para o mesmo fim, dinheiro emprestado à ex-secretária de estado do Tesouro, um mero epifenómeno (mais um) do costumeiro desmazelo irritado de António Costa: 500.000 euros – um terço do que a pobre rica senhora queria para sair da TAP – devem chegar. Ou, ainda melhor, ao próprio Costa. Quem nos arranca 3,2 mil milhões de euros com tanta facilidade para satisfazer tão volúveis desejos de ter “caravelas voadoras”, como disse num momento de intenso lirismo (a sua imagética poética já nos tinha dado as surrealistas “vacas voadoras” oferecidas a Alexandra Leitão), pode-se bem permitir este pequeno luxo. E, na viagem, terá tempo para se perguntar: “Quem foi pior? Eu ou ela?”.