Nunca na minha vida tinha visto um tão extenso rol de queixumes. A propósito da invasão russa da Ucrânia, um grupo de vinte intelectuais de esquerda subscreveu um abaixo-assinado que tem por título Pela paz contra a criminalização do pensamento. De que se queixam eles? Preparem-se, que a lista é longa. Por ordem: de serem vítimas de um “ambiente tóxico”, de “hostilização”, de “desacreditação pessoal”, de “intimidação”, de “escárnio”, de “desacreditação social”, de “pressão”, de “perseguição”, de “deturpação”, de “criminalização”, de serem objecto de uma “deriva totalitária”, de “intolerância” e de “censura”. Uf!

E qual a razão de tão inominável praga ter sobre eles caído? O motivo só acentua o horror e a tragédia do seu destino. A única razão de assim se terem transformado em párias de uma sociedade cruel é terem ousado “pensar diferente”. Como nos lembram, “pensar traz consequências”, e estas são tão mais dolorosas quanto “o poder político se sente proprietário das formas de pensar”, instituindo um “pensamento único” ao serviço daqueles que “colocaram de quarentena a faculdade de pensar”. Se, em geral, “pensar não é uma tarefa fácil”, como nos asseguram, certamente com conhecimento de causa, particularmente quando se trata de “pensar historicamente”, a missão roça o impossível quando se trata de elaborar “um pensamento subversivo que põe em causa a ordem das coisas” e a “criminalização da pluralidade do pensamento” atinge níveis nunca vistos. Estamos praticamente em presença, para utilizar os termos do governo russo a propósito dos russófonos do Donbass, de um “neo-holocausto” intelectual.

As forças de que o “poder” se serve para subjugar os seus heróicos, e aparentemente infrutíferos, esforços de pensamento são claramente expostas. São as forças de uma “sociedade onde o conhecimento é uma desvantagem e o saber não ocupa lugar” e que, “de forma acéfala”, propaga “opiniões irrelevantes e banais, sem referências éticas, e uma maneira de ser flexível e fútil”. O corolário do reino perverso dessas opiniões acéfalas, que dificilmente escondem “o desejo patológico de que a guerra se alastre à escala global”, é assinalado com grande profundidade filosófica: “O mundo torna-se instantâneo. Pode-se mudar mil vezes de princípios”.

Quem tiver lido a lista dos queixumes reproduzidos no primeiro parágrafo poderá compreensivelmente pensar que a força opressiva do “poder” se manifesta de forma tão implacável quanto as tropas invasoras de Putin se comportam na Ucrânia, destruindo cidades inteiras, causando inumeráveis mortes e provocando um fluxo de refugiados nunca visto na Europa depois da Segunda Guerra Mundial. Cometeria, no entanto, um erro quem pensasse desta maneira. Porque, para os signatários, a situação na Ucrânia é complexa e quem falar da luta de um povo pela sua soberania e liberdade contra uma potência invasora, assim resumindo a situação, simplifica “de forma acéfala” a realidade, impedindo “a compreensão do mundo em que vivemos de forma crítica”, ao passo que a “intimidação”, etc., de que as vinte personalidades afirmam ser objecto é de sentido único e inequívoco. Por outras palavras: temos aqui direito a vítimas em estado puro.

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Há nesta auto-descrição dos signatários uma mistura inextricável de ridículo, grotesco e obscenidade. Ridículo: a auto-importância que a si mesmos se dão. Grotesco: a própria afirmação de que são “perseguidos”, afirmação sem qualquer correspondência, mesmo que remota, na realidade. Obscenidade: a comparação tácita, que é impossível não pressentir, entre a sua situação e a dos russos que, vítimas de perseguição no seu próprio país, corajosamente se manifestam contra a invasão da Ucrânia.

Vamos agora ao tal “pensamento” de que tanto falam. É, dizem, um “pensar diferente”, que “não é fácil”, “um pensamento subversivo que põe em causa a ordem das coisas”, indo contra o “pensamento único” do “poder”. Sigamos a ordem, começando pela “diferença” do pensamento. Em que consiste, precisamente, ela? Tanto quanto se percebe, numa recusa em aceitar extrair as devidas conclusões de um facto óbvio: a Rússia invadiu a Ucrânia. Disse “extrair as devidas conclusões” porque, ao contrário da diplomacia russa, não se nega o facto bruto da invasão. A subtileza do “pensamento” consiste em, não negando o facto, saltar daí imediatamente para um plano puramente abstracto em que, para falar como um filósofo, nos colocamos numa situação de perfeita indiferença em que nada nos inclina numa direcção ou outra. É, de uma certa forma, a posição do asno de Buridan, incapaz de escolher entre dois campos verdejantes a igual distância dele e assim condenado a morrer à fome. O salto para o abstracto aterra numa proposição geral cuja falsidade é patente, tornando a sua discussão, neste contexto, ociosa: “O que melhor defende a civilização da selvajaria da guerra é o apelo incessante e incondicional à paz”. O “apelo incessante e incondicional [sublinho: incondicional]” é aqui maravilhoso. Hitler e Estaline – desculpe-se a facilidade dos exemplos – tê-lo-iam apreciado sumamente e oferecido uma medalha muito reluzente aos vinte subscritores.

Percebe-se que o pensamento não seja assim “fácil”. O asno de Buridan que o diga. Não se percebe, em contrapartida, em que possa ele consistir em algo de “subversivo que põe em causa a ordem das coisas”. Tudo aponta para que seja antes um pensamento acomodatício que, enquanto apela incondicionalmente à paz, deixa livre o campo de acção ao exercício da força bruta, isto é, à “ordem das coisas”. Que se veja nisto algo de “subversivo”, só se pode explicar, francamente, pela alta opinião que os signatários têm de si mesmos e da sua missão no planeta.

As duas coisas são, de resto, testemunhadas quando nos deparamos com a caracterização que oferecem daqueles a que se opõem e que, aos seus olhos, os perseguem com sanguinário furor. A acreditar no abaixo-assinado, são criaturas acéfalas, que apenas conseguem exprimir “opiniões irrelevantes e banais, sem referências éticas, e uma maneira de ser flexível e fútil” – outra perfeição, a “maneira de ser flexível e fútil”. Por artes dialécticas, uma tal “flexibilidade” é, no entanto, capaz de conviver com uma monstruosa inflexibilidade, a saber: “o desejo patológico de que a guerra se alastre à escala global”. Esse desejo de morte é, como não podia deixar de ser, o produto da nossa sociedade, que desvaloriza o “conhecimento” e o “saber” de que os signatários são os mais lídimos representantes. E tal é o seu brilho que a sociedade, acéfala e fútil, pronta a “mudar mil vezes de princípios” (o “pensamento único” admite, aparentemente, a pluralidade – mas sob a estrita forma da sucessividade) não os pode tolerar. A mediocridade, como se sabe, concebe forçosamente um tenaz rancor contra a excelência. Daí que cometa sobre esta a extensa lista de perfídias mencionadas no primeiro parágrafo.

Não disse, de propósito, quase uma palavra sobre as intenções que eventualmente presidem a este abaixo-assinado, em particular no que respeita à transição do reconhecimento da existência de uma invasão a uma posição semelhante à do asno de Buridan em versão pacifista: limitei-me a procurar descrever o movimento geral do espírito que o governa. É verosímil que, num caso ou noutro, o desenrolar da história dos últimos trinta e poucos anos tenha baralhado as cabeças sobre o destino da U.R.S.S e da Rússia, ao ponto de conceberem estas sob o modo composto de uma espécie de Úrssia. Mas, com toda a sinceridade, não me interessa. Interessa-me sim perceber em que mundo é que vivem. Porque se julgam de tal modo acossados por uma sociedade que em nada os incomoda e lhes dá, como obviamente deve dar, toda a liberdade de palavra? Porque se crêem detentores de um pensamento subtil e subversivo? E, finalmente, qual a legitimidade da capacidade diagnóstica que se atribuem para se instituírem como consciência crítica de uma sociedade que julgam acéfala, fútil e sem princípios? Se a condição para obter resposta a estas três questões for pôr a minha assinatura num abaixo-assinado (de não mais de três linhas), subscrito por gente de esquerda e de direita que deles discorde, pedindo que a sua presença na comunicação social seja, se possível, alargada para lá da sua actual e muito substancial dimensão – é como se o meu nome já lá estivesse. A investigação científica dos mistérios da psique humana justifica todos os labores.