No dia 19 de Maio de 1934, Thomas e Katia Mann embarcaram no Volendum, em Boulogne-Maritime, com destino a Nova Iorque. Durante os dez dias da travessia atlântica, Thomas Mann, apesar do “nervosismo dos neófitos”, manteve um diário de bordo, que viria a ser publicado com o título Viagem Marítima com Dom Quixote. Trata-se de um conjunto de notas sobre a viagem e o mar, a literatura e a arte, o espaço e o tempo. No que diz respeito a este último tema, as notas foram inspiradas por Richard Wagner – que, na ópera Parsifal, a sua reconciliação testamentária, e porventura egocêntrica, com o cristianismo, antecipou Einstein e declarou que “o tempo se converte em espaço”.
O Leitmotif do diário de Mann, como o título anuncia, é o Don Quijote de la Mancha de Cervantes, a obra “de cariz universal”, “criação singular, ingénua, de uma magnífica espontaneidade e soberana na sua contrariedade”, que Mann leu (ou releu) no Volendum. Segundo o autor de Morte em Veneza, o Quijote é um livro profundamente cristão, desse cristianismo primevo que destacou o indivíduo da tribo, deu-lhe dignidade e a ilusão de livre-arbítrio, e que “continua a ser um dos pilares principais sobre os quais repousa a civilização ocidental, sendo o outro a Antiguidade mediterrânica”. Como bem assinalou Mario Vargas Llosa na edição da Real Academia Espanhola comemorativa do quarto centenário de Cervantes, “o Quijote é um canto à liberdade”.
Numa conferência realizada em Abril de 1963 na universidade de Washington, em Seattle, Richard Feynman expressou um sentimento semelhante e argumentou que a civilização ocidental assenta em duas grandes heranças: o espírito científico e a ética cristã. O cientista nobelizado prosseguiu com uma reflexão sobre a natureza desses dois pilares e lembrou a necessidade de promover a sua cooperação e suprimir qualquer atrito que a pusesse em causa. E concluiu, enunciando um conjunto de normas que devia ser ensinado nas escolas, pois, uma vez entendido como corpo axiomático, dispensaria qualquer projecto de educação para a cidadania, em particular aqueles que, com a solicitude a montante e o totalitarismo a jusante, ignoram, implicitamente, essas mesmas normas: “Nenhum governo tem o direito de decidir sobre a verdade dos princípios científicos nem de prescrever de algum modo o carácter das questões a investigar. Também nenhum governo pode determinar o valor estético da criação artística nem limitar as formas de expressão artística ou literária. Nem deve pronunciar-se sobre a validade de doutrinas económicas, históricas, religiosas ou filosóficas. Em vez disso, tem para com os cidadãos o dever de manter a liberdade, de deixar os cidadãos contribuírem para continuação da aventura e do desenvolvimento da raça humana.” Vale a pena acrescentar, a título de curiosidade, que Richard Feynman se encontra, ao dia de hoje, proscrito da galeria dos virtuosos: como gostava de mulheres e, pior, frequentava bares com a intenção de as seduzir (hábito descrito pelo próprio nas suas memórias), está classificado como predador sexual.
Se a Antiguidade mediterrânica, o cristianismo e a ciência forem, como defenderam Mann e Feynman, os fundamentos da civilização ocidental, temos um problema. Já renunciámos ao grego, ao latim, aos clássicos, a tudo o que estrutura a nossa identidade enquanto ocidentais, e continuamos, através do progressismo, a combater a matriz cristã, contrapondo-lhe uma falsa secularidade e toda a sorte de religiões civis. Sobre o estado da ciência, se dúvidas havia, ficaram esclarecidas pelo triste espectáculo a que estamos a assistir por motivo da descoberta de um vírus respiratório. Com a Antiguidade esquecida, e os espíritos científico e cristão seriamente abalados, o prognóstico sobre o futuro do Ocidente não é animador.
Poder-se-ia argumentar que os artistas e os pensadores há muito se libertaram dos constrangimentos religiosos, que o cânone literário foi tomado, a partir de determinado momento, pelo agnosticismo, e que o cisma entre as humanidades e as ciências naturais remonta ao século XIX. No entanto, os modernistas, como Mann e, a partir de certa altura, Wagner, conseguiram construir uma visão ética e artística que não pôs de parte os conceitos de perdão e redenção, e muito menos rejeitou a dimensão espiritual do ser humano. Além do mais, o modernismo, como o romantismo que o antecedeu, desenvolveu uma ligação forte com a Antiguidade, à semelhança, aliás, do que acontecera no Renascimento. Não será a ópera uma recriação da dramaturgia grega? E não é significativo que a primeira ópera importante, o Orfeu de Monteverdi, tenha como tema o mito de Orfeu e Eurídice? Finalmente, e já que Thomas Mann foi referido, é oportuno lembrar que A Montanha Mágica está carregada de referências à mitologia grega, e que Morte em Veneza é, de acordo com o helenista Frederico Lourenço, um catálogo de alusões homéricas. Quanto ao cisma entre as humanidades e a ciência, é um caso particularmente difícil que ficará para outra ocasião. (Na realidade, todos estes temas são excessivamente complicados para serem tratados em meia dúzia de linhas, mas entenda-se o presente texto como uma exortação urgente e subjectiva, sem desígnios académicos. Deixo os tratados para os especialistas, que podem ficar descansados: não pretendo usurpar-lhes os direitos de propriedade.)
Resumindo, na transição do século XIX para o seguinte, e na véspera de uma reformulação radical do Ocidente, os clássicos eram lidos e recriados, a ciência preparava-se para a época dourada da física teórica, e as elites artísticas e filosóficas ainda cultivavam a reconciliação e a espiritualidade. Nos dias que correm, o moralismo e o ressentimento (a mais egoísta das paixões) triunfam sobre todos os valores. Nesta época obscurantista, só importa averiguar as preferências eróticas de Thomas Mann, se Wagner foi um protonazi, qual o grau de masculinidade tóxica de Feynman, e em que medida os autores consagrados pelo tempo cumprem os requisitos progressistas. A resposta, com frequência, determina a condenação, o esquecimento ou a sobrevivência das obras.
É evidente que a civilização ocidental já esteve sob ofensivas muito mais aguerridas, nomeadamente do nazismo e do comunismo. Contudo, o nazismo foi a expressão de uma anomia local e encontrou uma sociedade transtornada e empobrecida, mas vibrante, nos domínios da literatura, da arte e da ciência, e animada por movimentos extraordinários, como a nova objectividade, a nova visão, o expressionismo alemão e o círculo de Viena, entre outros. Actualmente, o ataque é global e infiltrado, mascara-se de boas intenções e actua sobre um deserto de ideias.
A realidade parece um panfleto distópico. Há romances banidos dos programas escolares ou referidos com acrimónia e o propósito de os desacreditar por neles terem sido encontrados vestígios de racismo, machismo ou misoginia. Há quadros escondidos nos armazéns dos acervos para não ferirem a susceptibilidade dos intolerantes. Há filmes que só podem ser exibidos com avisos e prólogos de contextualização, a “bola vermelha” da geração floco de neve.
As universidades traíram os seus ideais, juntaram-se aos bárbaros e fecharam-se na intolerância. A propensão para o boicote às opiniões desafinadas teve origem num público intransigente e mal-educado, e depois alastrou-se à comunidade científica e às administrações académicas. Os encarceramentos e assassinatos dos antigos regimes autoritários foram trocados, com uma eficácia aterrorizante, pelo silenciamento e desterro social. O novo totalitarismo não prende, cancela.
Nem as estátuas escapam à ira dos novos censores, e até a de Miguel de Cervantes, no parque Golden Gate, em São Francisco, foi vandalizada durante a última vaga de destruição levada a cabo por protestantes contra o colonialismo e a escravatura. O facto de Cervantes ter sido escravizado durante cinco anos não lhes conteve a raiva. (Ironizo, claro: se provavelmente nem sabem quem foi Cervantes, como poderiam estar a par dos detalhes da sua biografia?)
Como é demonstrado quase todos os dias, a perseguição à cultura ocidental é exercida por ignorantes. Para alem do mais, os tolos têm como modelo uma classe de ditadores e teorizadores da opressão que, de tanto frequentar o debate público sem contraditório, foi aceite como legítima representante de um ideal. A confirmação deste juízo acontece amiúde no contexto político, como naquela ocasião em que o presidente de uma república europeia, insuspeito de ter frequentado a extrema-esquerda, se apressou, uma vez eleito, a visitar um desses ditadores, sobre o qual só lhe ocorreu dizer que era uma “personagem controversa” de uma “vivacidade indiscutível”. O facto de o admirador em causa ser um notório desmiolado não é uma circunstância atenuante.
Na cena decisiva do filme O Inimigo da Turma (2013), do esloveno Rok Bicek, Robert Zupan, o exigente professor de alemão (e admirador de Mann) que substituíra temporariamente a popular e permissiva professora efectiva, explica aos seus alunos o que é o nazismo. Antes, assistimos à acumulação de tensões e equívocos, num microcosmo que pode ser interpretado como um esboço da sociedade contemporânea ou uma alegoria de histórias passadas.
O enredo é simples: uma aluna suicida-se e os colegas atribuem a culpa ao recém-chegado Zupan, que a partir desse momento é diariamente caluniado e ameaçado por um grupo de adolescentes incapazes de lidar com a frustração e pouco habituados às exigências de um ensino rigoroso. Entre as injúrias dedicadas ao professor, nazi é a mais infame (e a mais infantil). Zupan suporta todas as ofensas com a serenidade de quem sabe estar do lado certo.
Quando a tensão atinge o limiar da violência e o regresso à ordem se cumpre por mediação de um tardio exercício da autoridade, Zupan explica aos rebeldes o que é o nazismo, numa sucinta lição de ciência política onde está implícita a terrível verdade: os nazis, naquela sala, são os alunos. Se quisesse ser mais explícito, Zupan poder-lhes-ia ter dito que o nazismo teve uma génese revolucionária e alheia ao conservadorismo, predicava a destruição da cultura, exigia a submissão da arte e da ciência à ideologia, e usava o assassinato de carácter como arma política – a dada altura, os adolescentes insinuam que o professor é pedófilo, quando este apenas manifestara admiração pela forma como Sabina, a jovem suicida, executara o Op. 28, No. 15, o mais belo prelúdio de Chopin, mais conhecido como A Gota de Chuva.
No fim, ficamos sem saber se os adolescentes tiveram o discernimento de abraçar a reconciliação e o perdão. Noutro filme recente, A Pereira Brava (Nuri Bilge Ceylan, 2018), a personagem principal é um jovem impertinente e rancoroso que, concluída a educação sentimental a que se submete involuntariamente, cumpre a sua substância dostoievskiana e dá por si naquele lugar vazio e absurdo de que falava Camus. Sem vocação para nele permanecer, vê-se forçado a escolher entre o suicídio e a fé. Decide acreditar e perdoar. Há que referir que a história decorre na Anatólia: o Ocidente é territorial e conceptualmente difuso.
Para concluir, deixo esta ressalva. Todas as gerações dão o mundo como perdido quando assistem à tomada de posse das que se seguem. A amargura diante da mudança é um traço fundamental da natureza humana. É possível que os tempos sombrios que testemunhamos sejam breves e um prelúdio do restabelecimento da cultura. Caso contrário, seremos capturados, em definitivo, por um vórtice de decadência que nos condenará, se não à extinção, pelo menos à insignificância. O que ficará do Ocidente caso se cumpra a vontade dos novos bárbaros? Ruínas, provavelmente. E um dia alguém dirá, como Júlio César rodeado dos destroços de Tróia, que até as ruínas pereceram.