Merkel perdeu as eleições na Grécia, e tem um problema. Mas Tsipras não ganhou as eleições na Alemanha, e também tem um problema. Tsipras e os seus aliados anti-semitas de extrema-direita dizem dispor de um mandato democrático para acabar com a “austeridade”. Mas a austeridade na Grécia também é um resultado da democracia. Não da democracia na Grécia, mas da democracia na Alemanha e noutros países onde os cidadãos não estão entusiasmados pela ideia de pagar os custos de manter a Grécia na zona euro. O inferno são de facto os outros.

O euro foi sempre muito mais popular na Grécia do que na Alemanha. A maioria dos alemães nunca quis o euro, porque percebeu logo, como aliás perceberam os gregos, que iria converter-se num meio de transferir dinheiro do norte para o sul. Essa transferência, até há pouco tempo, tinha no entanto uma razão de ser: era uma ajuda para aproximar e integrar gradualmente sociedades europeias com diferentes níveis de prosperidade. Os alemães pagavam, mas um dia, nas margens meridionais do continente, haveria comunidades mais ou menos iguais à sua, em costumes e em prosperidade. A vitória do Syriza demonstrou que tudo isso era uma ilusão. A Grécia, depois de mais uma década na zona Euro e mais de três décadas na CEE e na União Europeia, quer o dinheiro dos alemães, mas não quer ser como os alemães.

A nova oligarquia grega resolveu, astutamente, tentar focar as atenções na questão da “reestruturação” da dívida. Alguns evocam até precedentes de solidariedade europeia, como o perdão da dívida alemã em 1953 (de facto, esse perdão só abrangeu na prática as penalidades impostas pelos vencedores da I Guerra Mundial, mas não os créditos contraídos pela Alemanha). Acontece que a verdadeira questão grega não tem tanto a ver com a dívida, que já foi parcialmente perdoada, mas com as chamadas “reformas” que desde 2010 a troika tentou negociar com os governos de Atenas em troca de assistência financeira. O que todos descobriram entretanto é que essas reformas são incompatíveis com o regime grego.

Durante décadas, a oligarquia grega, uma das mais corruptas da Europa, arranjou votos convencendo os eleitores de que podia fazer da Grécia uma sociedade de funcionários públicos que se reformam aos 45 anos. Foi esse ideal que a velha oligarquia não foi capaz de defender perante a troika em 2010, e é desse ideal que o Syriza e os seus aliados da extrema-direita são agora os novos campeões. O problema é que precisam que todos os outros europeus, a começar pelos alemães, lhes sustentem o sonho.

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Durante muito tempo, foi possível negociar e transigir de parte a parte, porque do lado grego estavam partidos apesar de tudo “europeístas”. A família Karamanlis, também conhecida por Nova Democracia, e a família Papandreou, com o pseudónimo de PASOK, estavam filiadas nas “internacionais” democrata-cristã e socialista que  alternavam nos governos dos países europeus e que haviam concebido e protagonizavam a integração europeia desde a década de 1950. Essa filiação tinha dado aos velhos oligarcas gregos maneiras e alguns escrúpulos típicos do europeísmo.

O Syriza e os seus colaboradores anti-semitas estão, porém, isentos desses compromissos. O novo governo grego não representa uma “viragem à esquerda”, como no tempo em que os eleitorados oscilavam entre a direita e a esquerda, mas uma ruptura nacionalista com o europeísmo das gerações do pós-guerra. Por isso, não hesitou em reabrir as cicatrizes da II Guerra Mundial, ao deixar correr a hipótese de reclamar com juros as extorsões nazis, nem teve dúvidas em inclinar-se a favor da autocracia de Putin contra as democracias ocidentais. A Grécia é neste momento governada por uma coligação que quer o euro apenas porque quer o dinheiro que lhe chega através da união monetária, mas não quer a União Europeia, isto é, o projecto de se aproximar dos modelos sociais e económicos da Europa nórdica.

Já passou, por isso, o tempo dos “compromissos razoáveis”. Há ainda europeístas que acreditam que tudo se resolverá entre a Grécia e os seus parceiros europeus quando o debate for centrado na procura de uma solução comum para um problema comum, que seria o do “crescimento” na Europa. Mas o governo grego não tem espírito europeísta e tem um problema próprio, que não é o do crescimento, nem o da dívida, mas o de defender na Grécia um tipo de sociedade que, ao nível de prosperidade que alcançou em 2010, só é viável através da taxação das outras populações europeias.

Um triunfo do Syriza e dos seus aliados de extrema-direita galvanizaria certamente o Podemos em Espanha. Mas o risco não está nas réplicas do Syriza em outros países do sul. O mais importante é que no dia em que Angela Merkel parecer que cedeu ao nacionalismo grego, nesse dia começará a ascensão do nacionalismo alemão e o declínio dos partidos europeístas da Alemanha.

Só visto do sul é que o “domínio alemão” existe, porque se confunde “domínio” com a relutância alemã em despejar dinheiro no sul do continente, a não ser no quadro de uma adaptação das suas sociedades e economias aos padrões nórdicos. Do ponto de vista germânico, a história dos últimos anos é uma longa cadeia de derrotas e de submissões: os alemães não queriam o euro, e tiveram o euro; não queriam resgates, e tiveram resgates; não queriam o BCE a imprimir dinheiro para financiar défices, e têm o BCE a imprimir dinheiro para financiar défices. Será fácil convencer o eleitorado alemão de que também ele merece ser “independente”. Já não vale a pena fingir: estamos a viver um momento histórico, em que os caminhos na Europa finalmente se bifurcaram.