Na longa maratona em que Rui Rio se inscreveu, a meta não é certa e a pista não é única.
A sua estratégia interna, de silenciamento de críticos e obliteração de adversários, está cumprida ao ponto de se ter tornado imune a derrotas eleitorais. A sua estratégia nacional, de recentramento do PSD, devolveu alguma tolerância social a um partido fustigado pelos anos da troika e reintegrou-o no diálogo com o poder, sendo chamado a validar nomeações institucionais, como se viu no Tribunal de Contas, e a acordar outras tantas, como se viu nas CCDR’s.
Excetuando o risco, bem real, de ser usado como mais uma peça no dominó de desresponsabilização do primeiro-ministro, não haveria nada de errado neste rumo, incluindo para quem lhe viesse a suceder.
Para o sistema político, porém, a ideia de fingir de morto até um governo cair de podre poderá não ser a mais benéfica ou responsável – até porque, até lá, a putrefação tocar-nos-á a todos.
Por um lado, devido ao crescimento do Chega, que tem na latência de Rio um fator favorável, na medida em que de pouco serve seduzir descontentes com o PS se isso criar insatisfeitos no PSD, que encontram em Ventura uma alternativa.
Por outro, devido à arquitetura do regime português que, sendo democrático, presume a existência de oposição – algo que tem acontecido menos do que deveria.
Dois exemplos disso deram-se na semana mais frágil do governo desde os fogos de 2017, com o apoio de Costa à recandidatura de Luís Filipe Vieira, e na passada semana, com o primeiro-ministro a ver os seus deputados e ministros rebelarem-se contra a obrigatoriedade da app StayAway Covid.
Se recuarmos e nos lembrarmos do posicionamento do líder do PSD em ambos os casos, entendemos como Rio não só demitiu o seu partido do papel de oposição como se removeu a si próprio de cena.
Não há explicação possível para um homem que se estabeleceu enquanto autarca fazendo frente a Pinto da Costa não retirar ganhos políticos de ter um adversário colado ao presidente do Benfica.
Nessa semana, contudo, o que fez Rui Rio? Defendeu repetidamente a transferência de um tribunal para Coimbra, desviando as atenções do ciclo noticioso.
Costa, pressionado pela reação mediática, acabaria por sair da comissão de honra de Vieira, mas não por causa do PSD. Do mesmo modo que viria a abandonar a proposta de obrigatoriedade da app, cedendo não a Rui Rio, mas ao grupo parlamentar do PS e à opinião pública.
Dir-me-ão que Rio, friamente, não gosta de hostilizar o primeiro-ministro, temendo desgastar-se como outros antes de si. Mas se essa frieza conceder um desmesurado grau de inimputabilidade a António Costa, será que se justifica? E será que serve o país?
O que é, afinal, mais patriótico? Adormecer duas legislaturas na ambição de chegar a chefe de governo ou servir verdadeiramente a sua função constitucional e liderar a oposição?
Um governo é tão menos mau quanto melhor for a sua oposição – e este governo não é medíocre por demérito exclusivamente seu.
Ao longo de quase quatro décadas de percurso, Rui Rio cultivou uma imagem de maverick, de outsider, de político “diferente dos outros”, sem medo de romper, de ser “politicamente incorreto” e de estar sozinho contra tudo e contra todos, “como Sá Carneiro”, a sua referência. No entanto, aquilo que os seus mandatos ao leme do PSD mostram é o contrário disso.
Como é que o político que anunciava “um banho de ética” viabiliza uma flexibilização das regras de contratação pública é, para mim, um mistério.
Se há tempo em que o país precisava de alguém com a coragem de enfrentar poderes instalados, sem receios de solidão ou de elites e unanimidades, era este tempo. Mas Rio não tem sido – nem querido ser – esse alguém.
À beira de celebrar três anos como presidente do PSD, a sua espera quieta pela queda de António Costa teve dois efeitos na democracia portuguesa: 1) o Chega assumiu-se como força emergente e voz liderante da oposição e 2) o PS recebeu uma inacreditável tolerância, quando não subserviência, face aos seus abusos de poder.
Nenhum destes, creio, é do interesse nacional – para utilizar a expressão rioísta.
Não pretendendo colocar em causa o sentido tático de Rui Rio, mais do que testado e comprovado, insisto na questão, um tanto incómoda, é certo, das consequências da sua estratégia no nosso sistema político.
Tanto o seu desaparecimento, como personalidade, quanto a hibernação do seu partido, como instituição, parecem prejudicar os equilíbrios e mecanismos de escrutínio que um governo socialista mereceria.
Ficar sentado até vésperas de legislativas, na esperança de que ninguém dê por ele e de que todos dêem pelo dr. Costa, não é um grande plano – eventualmente nem para Rio; e certamente que não para o país.
Caso chegue a primeiro-ministro, a sua história será inevitavelmente marcada pelo tempo de vazio institucional que antes promoveu.
E como se governará Portugal quando o PS vai tomando, uma a uma, todas as estruturas em que o poder português assenta?
P.S.– Entre as várias cortinas de fumo tecidas por António Costa, a do Plano de Recuperação e Resiliência, que não é o “Plano de Retoma” nem tão pouco o “Plano Costa Silva”, foi de uma eficácia tal que até o raciocínio do primeiro-ministro encobriu. Na entrevista que deu esta semana à TVI, Costa considerou a Cultura e o Turismo como “os setores mais atingidos” pela crise nos últimos meses. Lendo o PRR que apresentou em Bruxelas, todavia, não consta uma única medida para qualquer um desses setores.