O Presidente da República e o primeiro-ministro foram, juntos, visitar as instalações do maior hospital do país numa das semanas mais difíceis para o Serviço Nacional de Saúde. Os dois esforçaram-se muito por afirmar a normalidade da visita e, quando foram pedidos mais detalhes sobre a aliança palaciana, Luís Montenegro até ficou irritado com as perguntas. Os dois pareceram alinhados na versão apresentada: o convite surgiu do Governo e o Presidente aceitou, seguindo a prática que tinha com o Executivo anterior e a mesma que aplica quando há metas do PRR à mistura.

Não há razões para colocar em causa a palavra do chefe de Estado e do chefe de Governo. Até porque a justificação assenta numa premissa verdadeira: o Presidente foi, por defeito e formalidade, informado da visita do primeiro-ministro e também convidado para a inauguração das instalações da maternidade do Santa Maria (porém, prevista para 1 de setembro). Coisa diferente é o tempo e o modo da visita: foi o Presidente que quis estar ao lado do primeiro-ministro naquela semana, naquele sítio e àquela hora.

Nas entrelinhas do que ambos disseram, no modus operandi presidencial e falando com quem acompanhou o processo não é difícil concluir que, de alguma forma, foi o Presidente que engendrou o encontro. Isso acaba por ser também evidenciado quer na maneira espontânea com que Marcelo Rebelo de Sousa suspendeu os banhos em Monte Gordo (entretanto já voltou para lá), quer na forma como Belém comunicou esse evento (ao mesmo tempo da reunião de quinta-feira, onde o chefe de Governo presta informação ao chefe de Estado, o que raramente é comunicado aos jornalistas). O Presidente quis servir dois objetivos políticos: o primeiro foi mostrar aos portugueses que está, vigilante e escrutinador, em cima da ação governativa; o segundo foi mostrar que é um suporte para o Governo quando este necessita.

Começando pelo primeiro objetivo, há uma espécie de um paternalismo presidencial, quando exige ao Governo que lhe mostre os resultados de uma obra, tal como um pai diz a um filho para ir buscar o caderno e lhe mostrar se fez, mesmo, os trabalhos de casa. Nesta postura interventiva do Presidente, a hiperatividade política vem quase sempre misturada de um conceito que o biógrafo de Marcelo e jornalista Vítor Matos chamou um dia de “magistério de interferência” — um novo patamar que eleva o magistério de influência consagrado na Constituição. Neste caso, nem sequer há isso. Marcelo não quer forçar o Governo a tomar uma posição diferente da sua (até porque concorda com o plano do Executivo), quer apenas mostrar que está lá, que está em cima, que pressiona. O que existe, neste caso, é uma espécie de magistério daquilo que a cultura popular chamaria de meter o bedelho.

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O segundo objetivo do Presidente foi manifestar apoio ao atual Governo. O conselheiro de Estado e ex-líder do PSD Luís Marques Mendes expôs essa intenção no comentário semanal de domingo na SIC. “O Presidente em muitos momentos andou com Costa ao colo, portanto é natural que, com a mesma coerência, ajude o governo minoritário de Luís Montenegro”, disse Marques Mendes. Ora, olhando para os oito anos e meio de governação de António Costa, em que o suporte de Belém foi quase sempre férreo, fica claro que Luís Montenegro tem direito a equidade no tratamento. Ou seja: tem direito ao colinho de Marcelo. Mais do que isso: Marcelo tem o dever e a obrigação — perante o eleitorado que o elegeu e em coerência com o apoio ao Governo anterior — de dar o mesmo colinho a Montenegro que deu a Costa.

A questão fundamental é se esse colinho ajuda ou prejudica Luís Montenegro. A visita ao Santa Maria provavelmente ajuda zero o primeiro-ministro. Naquilo que o apoio presidencial pode ser crucial é na jogada orçamental. Se Marcelo disser previamente que dissolve a Assembleia da República se não houver orçamento (como fez em 2021) ou se, em alternativa, disser que não dissolve, pode conseguir inclinar o jogo a favor o Governo. Dependendo do timing, das sondagens e do avançar das negociações usar a carta da ajuda de Belém pode ser fundamental.

Para ser coerente, o Presidente da República deveria dissolver a Assembleia da República em caso de chumbo do orçamento, mas já preparou terreno para ter um segundo caminho. Marcelo Rebelo de Sousa separou no final de maio duas realidades: uma “crise política eleitoral” e uma “crise política não eleitoral” (que, explicava o professor Marcelo, “é o Governo governar por duodécimos”). Até lá, a melhor forma que o Presidente da República tem de ajudar o Governo é não andar a acompanhar Luís Montenegro pela mão. Ou seja: não meter o bedelho in loco.

Marcelo pode, em alternativa, usar essa antiga arma presidencial chamada palavra para agir. Está dentro da latitude da intervenção presidencial dizer — como fez na segunda-feira novamente a partir de Monte Gordo — que se sabe pouco do que pensa o atual Governo para a saúde ou que deve haver um pacto de regime, mas só depois de ser cumprido o plano de emergência. Até porque Luís Montenegro, nas suas intervenções como primeiro-ministro (e sem Marcelo ao lado), tem sido, como diria Marques Mendes, melhor do que se esperava.