Dia 24 de Fevereiro tudo mudou. Andávamos muito ocupados – eu, pelo menos, andava – com os delírios da wokeness que se manifestavam a propósito de tudo e mais alguma coisa, com o seu cortejo de “cancelamentos” e proibições sem fim. Podíamos chorar, como Heraclito, ou rir, como Demócrito, para recorrer a um topos clássico, mas era difícil ser verdadeiramente indiferente às torceduras que a linguagem, por exemplo, sofria às mãos da nova classe de tutores morais que nos caiu em cima. De repente, tudo isso passou para um longínquo segundo plano. O espectáculo da brutalidade da invasão russa da Ucrânia e da estupidez daqueles que, face à guerra, simpatizam – à esquerda e à direita, convém sempre lembrar – com a autocracia de Putin e desprezam a heroicidade dos ucranianos, lembrou-nos uma divisão incomparavelmente mais profunda da sociedade. Se muito da wokeness nos faz pensar nas piores extravagâncias da “lei seca” nos Estados Unidos, a invasão russa recorda – por mais prudente que se seja em matéria de analogias históricas – a violência destruidora do nazismo e a adesão que este a muitos suscitou. Entre as duas coisas há um abismo sem fundo.
É o abismo entre o equívoco e o inequívoco. Não é suficientemente notado que o grosso do delírio do chamado “politicamente correcto” assenta em intuições que são essencialmente justas e que se podem em geral resumir no respeito pelos outros. É claro que, a partir dessas intuições, e apelando a alguns dos piores instintos humanos, muito evoluiu para a loucura sistemática, graças à propensão autoritária dos iluminados do costume, que nunca falham este género de coisas. Mas não é talvez errado ver nesta evolução mais uma manifestação – particularmente perversa, admito – daquilo que, em meados do século XIX, Tocqueville chamou “despotismo democrático”: uma igualdade minuciosamente regulamentada por um Estado tutelar. Há, portanto, algo de equívoco na wokeness com que temos de conviver: ela simultaneamente assenta em intuições morais justas e condu-las à insânia possível em democracia.
Em contrapartida, nada há de equívoco na brutalidade de Putin. Aqui não é possível rir como Demócrito. As imagens que as televisões nos transmitem – e devemos sem dúvida agradecer-lhes toda a cobertura da guerra – são a prova viva do sofrimento sem nome de milhões, vítimas do sem-sentido da pura vontade de dominação e extermínio. Repito: nada de equívoco aqui. Tudo é claro e nítido aos olhos de todos.
De todos? Nem de todos. A capacidade de não ver, possível pelos costumeiros artifícios das teorias conspiratórias e pelo fascínio pelo poder bruto, opera milagres. Há quem, de facto, consiga não ver. Não ver para não crer. Ou, melhor: não crer para não ver. Porque há uma fina teia de ideias que se constrói, destinada a tornar opaco o brilho da evidência, adaptando à brutalidade da guerra a brutalidade do pensamento.
E os casos mais interessantes e assustadores deste fenómeno patológico não são os dos habituais opinadores que fazem a tradicional viagem para Sirius, onde o mau cheiro dos cadáveres não os incomoda, e elaboram elevadas considerações geo-estratégicas que lhes permitem inverter a posição das vítimas e dos agressores. Os agressores tornam-se vítimas, obrigadas a agir por necessidade, e as vítimas agressores, disfarçando a sua maléfica causalidade sob as vestes hipócritas de um sofrimento encenado. Foi assim – lembram-se? – no 11 de Setembro. Voltou a sê-lo agora. O esquema é sempre o mesmo, cumprindo a mesmíssima função: por detrás do visível enganador, há um invisível que, apenas ele, garante a plena inteligibilidade do que acontece. E eles vêem o invisível. Todos os conhecem e daí não vem qualquer surpresa, a não ser aquela que o patético sempre sugere um pouco.
A verdadeira surpresa – pelo menos para mim – vem de outros lugares. Vem daqueles que, na solidão do seu espírito, apreciam a brutalidade, onde alucinam um antídoto contra a corrupção generalizada dos costumes que a wokeness teria trazido a este mundo. Há muita gente assim. O que para eles é equívoco não é a tal wokeness. Essa é inequívoca, já que todos os sinais da decadência moral se encontram nela inscritos. O que é equívoco é a própria guerra, que não pode, por definição, ser como nos aparece. O mecanismo de pensamento é muito semelhante ao dos primeiros, incluindo a dimensão conspiratória, só que menos elaborado: Putin, finalmente, combate a podridão moral que por cá grassa. E, no mínimo, merece o benefício da dúvida.
Uns e outros lançam alguma luz sobre o passado. Falei há pouco da analogia com a barbárie nazi e com a adesão que, mesmo fora da Alemanha, ela em muitos suscitou. Nestes três últimos meses, vejo algo de semelhante a esta última atitude. Não faltaram intelectuais para admirar e compreender a barbárie – como não faltam agora. E não faltaram pessoas comuns que, feridas pela solidão e o anonimato, a viram como uma vingança justa e redentora – como agora também não faltam. Assim, observando o caso presente, há uma luz, por mais ténue que seja, projectada sobre o passado. Uma luz que nos mostra como, por motivos diferentes, embora afins, o pior da natureza humana – a incapacidade de muita gente proceder, em momentos decisivos, à mais simples distinção entre o bem e o mal (é mesmo disso que se trata) – pode vir à tona.
Por mim, não tenho a mínima intenção de me converter ao grotesco da wokeness. Mas não a confundo, na equivocidade da sua génese, com o inequívoco horror da barbárie. E muito menos vejo na segunda um miraculoso antídoto para a primeira. Há vezes em que o espectáculo do sofrimento humano traz consigo uma evidência irrecusável que só a estupidez sabe não ver. E, mesmo sem ser particularmente dado a moralismos, consigo ainda espantar-me com a recusa de vária gente em aceitar a distinção entre o bem e o mal, mesmo quando ela é inequívoca e se oferece ao mais desprevenido olhar humano.