A “Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa” realizou um trabalho de assinalável valor. Pela primeira vez na esfera da Igreja Católica em Portugal, foi exposta de forma séria, sóbria e metódica a existência de, pelo menos, 4815 vítimas de abusos sexuais na Igreja — “uma muito pequena parte” do que se estima ser o universo real de vítimas, como se percebe pelo perfil das testemunhas no actual processo (muito mais qualificado do que a esmagadora maioria da população portuguesa). Não é possível sobrevalorizar a importância de quebrar a cultura de ocultação no seio da Igreja: para as vítimas, para os agressores, para a Igreja e para o escrutínio social, tudo será diferente a partir da publicação do relatório da Comissão Independente. Agora, há que traçar o rumo através do qual tudo mudará.

A primeira pergunta quanto a esse rumo recai sobre a própria Igreja: como vai reagir? Não se trata apenas de olhar para o passado, pedir perdão ou introduzir mecanismos de compensação ou indemnização das vítimas. Trata-se, desde logo, de enfrentar o presente: afastar de imediato os mais de 100 agressores identificados que permanecem no activo, institucionalizar canais seguros para denúncias, manter o escrutínio em curso, responsabilizar aqueles que, na hierarquia da Igreja, contribuíram para a ocultação, protegendo agressores e sendo cúmplices da multiplicação de vítimas. E fazer tudo isto de forma célere. Não começou bem: a data de 3 de Março, escolhida para a assembleia da Conferência Episcopal Portuguesa que discutirá o relatório, não transmite esse sentido de urgência.

Não quero ser injusto: é inquestionável que a Igreja Católica teve a coragem e o mérito de nomear a Comissão Independente, o passo decisivo que nos trouxe as evidências e as revelações agora conhecidas. Mas também não alinho em ilusões: na Igreja portuguesa, resistem vários oponentes a este processo de escrutínio e inúmeros bloqueios institucionais. É assumido que foi o Papa Francisco quem forçou decisivamente a viragem na forma como a Igreja lida com os abusos sexuais. O acesso aos arquivos da Igreja foi obstaculizado e estes, quando consultados, revelaram casos de encobrimento e ocultação sistemática. Houve um bispo (Beja) que recusou ser entrevistado pela Comissão Independente, houve três bispos que se apresentaram na entrevista de forma explicitamente não-colaborativa e houve oito bispos (dos 19 entrevistados) que relataram casos “que vinham do antecessor” — como que procurando justificar o injustificável silêncio. Ou seja, o desafio da Igreja é imenso: a sua árvore tem maçãs podres até nos seus ramos mais elevados.

A segunda pergunta sobre o que sucede após a publicação do relatório pela Comissão Independente já não é sobre a Igreja — é sobre o Estado. Desde logo, porque há alterações legislativas em causa. Depois, porque os abusos sexuais de menores não acontecem apenas em contextos religiosos, nem a cultura de ocultação é exclusiva da Igreja Católica. Há dezenas de instituições com financiamento público destinadas a enquadrar e a proteger crianças, onde as denúncias de maus-tratos ou de abusos sexuais são ignoradas, abafadas ou rejeitadas. Casas de acolhimento, orfanatos, centros educativos para menores de 16 anos que cometem crimes, estabelecimentos prisionais — para estas e outras instituições de onde possam surgir suspeitas de casos abusivos, o Estado não poderá agora deixar de criar mecanismos de denúncia, escrutínio e transparência. Se a Igreja se mexeu, o Estado não poderá ficar quieto.

A Igreja olhou para os seus demónios, após décadas de ocultação e encobrimentos. As consequências, agora, atingem também o Estado: nas instituições destinadas a menores, há vítimas silenciadas que merecem uma voz.

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