É interessante a análise de Luís Ribeiro, no artigo “A Catalunha e o fim da Europa Federal”, publicado anteontem no Observador. Não conheço Luís Ribeiro, nem o seu pensamento, mas concordo com o que expõe: “inesperadamente, é a própria Europa das regiões que está a dar cabo do federalismo europeu.”

Há muito que penso que o federalismo deve ser arquivado e a bicicleta encostada de vez. Defendo-o porque considero que o federalismo e a bicicleta estão entre os maiores factores de perturbação que a Europa enfrenta e constituem a fonte de muitas instabilidades que nos têm inquietado e dos perigos que assombram o futuro.

O problema dos federalistas é o próprio Estado federal europeu, que não podem negar seriamente como propósito final, mesmo quando caem em flagrante contradição conceitual, como foi o caso recente das listas transnacionais para o Parlamento Europeu: nada teriam de “federais”, mas de Estado unitário – a rampa onde estamos postos. Nas alturas em que o debate ferve, temos visto federalistas encartados recuarem, desmentindo serem a favor do “Super-Estado” e recusando essa visão. Mas o Estado federal europeu, também designado Estados Unidos da Europa, não seria senão isso: o Super-Estado, em toda a cristalina evidência. Se o não quiserem, se não trabalham por esse Estado federal, então os federalistas seriam contra o federalismo, paradoxo dos paradoxos.

Os Estados Unidos da Europa seriam, eles próprios, uma construção nacional – ou tentativa disso -, à semelhança dos Estados Unidos da América, de que importam a imagem, o nome e o modelo. Seria a réplica, no nosso continente, da construção do lado de lá do Atlântico. Todos os tiques e alegorias o evidenciam.

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Quando foi da Convenção que em Bruxelas preparou laboriosamente a Constituição europeia, o paralelismo era frequente. Giscard d’Estaing, que presidiu à Convenção, apreciava compará-la, com pompa épica, ao modelo histórico de Filadélfia, onde, em 1787, onde se escreveu a Constituição dos EUA. Se a Constituição americana é encimada por um Preâmbulo, abrindo pelo célebre “We the people”, a Convenção de Bruxelas quis outro Preâmbulo, iniciado pela citação de Tucídides: “A nossa Constituição (…) chama-se ‘democracia’ porque o poder está nas mãos, não de uma minoria, mas do maior número de cidadãos.”

Um eurodeputado francês, também “convencionista”, de grande craveira, Alain Lamassoure, escreveu, em 2003, um livrinho apologético, “Ce sera une autre Europe”, que terminava em destemido entusiasmo: “Afinal, é assim [pelo triunfo do amor do futuro sobre o amor do passado] que os ‘novos continentes’ foram construídos, começando pelos EUA. Os passageiros da ‘Mayflower’ não negaram as suas origens nacionais, mas construíram uma nova nação em outro lugar. Quatro séculos depois, os europeus deste lado do Atlântico são chamados a criar um novo continente: aqui mesmo.”

Em conversa com ele, fiz-lhe uma observação breve, procurando serenar a invocação heroica dos “pilgrim” do início da colonização americana nos anos 1600: “Lamassoure, não se esqueça que, aqui, nesse tal ‘novo continente’ que é a Europa, os índios… somos nós.” É sempre útil descer à realidade e pôr os pés na terra.

Os Estados Unidos da Europa asfixiariam e esmagariam a individualidade nacional dos membros, reduzidos a Estados federados. O Texas não é uma nação, o Arizona tão-pouco, a Califórnia idem. As Virgínias, Maryland, Florida, Massachusetts, Ohio ou Illinois também não. O mesmo podemos verificar nos Länder da Alemanha ou nos Estados da República Federativa do Brasil. Estado federado não é nação, nem tem identidade internacional.

Num certo ponto deste debate, até simpatizei – e simpatizo – com uma escapatória dos federalistas (alguns, como Joschka Fischer ou Lionel Jospin, na esteira de Delors), que aí aterraram há uma década e picos: “Nós, o que queremos é uma Federação de Estados-Nação.” Certo! Paremos aí um pouco. A Federação de Estados-Nação estará muito bem, mas não é uma federação. É uma união. É uma União de Estados-nação. A diferença não é apenas de palavras, mas de conceitos fundamentais: numa federação, os Estados federados não têm sobra de soberania, nem são realmente Estados-nação; na união, os Estados-membros continuam Estados-nação e, com os limites e regras dos tratados, são soberanos, com relações internacionais específicas e próprias. Certo que o “unionismo”, a nova construção que vamos fazendo, pode inspirar-se, aqui ou ali, em arquitecturas federais ou que se lhe assemelham. Mas isso não é federalismo, porque são outros o propósito e a ideologia: não querem consumir os membros numa nova fusão estadual.

No Parlamento Europeu, escutei inflamados discursos federalistas, clamando que a construção europeia é uma “construção pós-nacional”, logo tirando sôfrega cascata de conclusões que não se contêm necessariamente na premissa. Se por “construção pós-nacional” se entende, com exactidão, uma construção posterior à formação e sedimentação dos Estados-nação, a frase ainda poderá ter algum préstimo, colocando o raciocínio noutro tempo e patamar. Mas, se por “construção pós-nacional” se entende o menosprezo dos Estados-nação, como velharias, e o seu consecutivo atropelo, então está tudo estragado. O federalismo também pertence a esse passado, porque pertence ao tempo da formação dos Estado nacionais. Agora, é outra questão.

Os vendavais federalistas têm feito muito mal à Europa. Têm travado o desenvolvimento porque intoxicam o debate com demasiado palavreado e tolices ideológicas.  São soprados por afoitos visionários, que afirmam ver muito para além do horizonte, mas frequentemente tropeçam no primeiro passo à frente. Não conhecem, nem vêem o chão que pisam. São das maiores ameaças ao nosso futuro colectivo, porque geram medo e apreensão, intranquilidade e dissidência. O Brexit é filho directo desses entusiasmos. Um desastre! Um risco tremendo para a Europa – e para os britânicos também. E boa parte dos populismos anti-europeus e dos radicalismos extremistas que crescem são igualmente filhos desses arroubos. A maioria dos europeus não querem trocar o seu país por outro: querem acrescentar, não querem substituir; querem somar e não subtrair-se.

Luís Ribeiro cita no seu artigo algumas afirmações do federalista austríaco Robert Menasse, para quem a geração fundadora da UE “sonhou com uma Europa sem nações” devido à experiência de duas guerras: “para evitar isso no futuro, tem de se superar o nacionalismo e as nações”. Isto é um disparate absoluto. A obsessão federalista é que poderia provocar terceira guerra e, se não for arquivada em museu ou biblioteca, acabará por destruir tudo o que construímos desde os anos 1950. Há uma frase de Robert Menasse, em entrevista ao Público, que sintetiza a loucura que nos ameaça: “É preciso matar a democracia nacional para ter uma democracia europeia”. O mesmo susto que provoca a proclamação de Martin Schulz, líder do SPD, em Dezembro passado, ao anunciar querer um novo tratado para estabelecer os Estados Unidos da Europa até 2025 e quem discordasse, deveria sair. Se assim fosse, deveremos sair. Ou ele.

O nosso guia está na sabedoria mostrada na entrevista, por escrito, do presidente da Comissão Europeia ao Expresso: “A Europa não pode ser construída contra as nações.” Jean-Claude Juncker não ficou por aqui. Acrescentou: “Quando tinha 15 anos era federalista e agora não acredito nos Estados Unidos da Europa.”

Há décadas que andamos cativos do mito federalista da bicicleta: “A construção europeia é como uma bicicleta: se pára, cai.” Isto é manipulação e pura fraude – não cai coisa nenhuma. O mito procura fazer-nos “avançar”, “avançar”, “avançar”, pela pura estética do movimento, sem cuidar da necessidade, nem do destino. A pedalada na bicicleta costuma ser embrulhada em ardil: diz-se uma coisa, pretende-se outra. No plenário de Estrasburgo, ouvi Romano Prodi, presidente da Comissão Europeia, caracterizar assim o “método europeu”, há cerca de 15 anos: é a “ambiguidade construtiva”, delicioso eufemismo.

O que sofremos do euro foi o resultado disso mesmo. Com a casa já a arder, o coro foi unânime a denunciar que tinha havido “alguns erros” na construção inicial do euro. Não foi erro de espécie alguma – foi inteiramente consciente. Foi a “ambiguidade construtiva”, a que Prodi aludiu candidamente.

Um dia, a bicicleta pode estampar-nos contra o muro ou precipitar-nos noutro abismo. Está na hora de a encostarmos de vez e passarmos a andar a pé – sabendo o chão que pisamos, conhecendo o caminho para onde vamos. As coisas sólidas e seguras querem-se assim.