Estou entre aqueles que, em 2015, subestimaram a viabilidade da geringonça nascer e constituir uma plataforma sustentável para a governação do PS. Evitando cometer o erro uma segunda vez, evitarei prognósticos sobre a sua esperança de vida. Mas julgo seguro, nesta fase, traçar um balanço sobre o seu impacto e concluir que, ao contrário do que tantas vezes se lê, a geringonça foi um fracasso político para a esquerda. Sim, a sua grande vitória – existir, possivelmente durar uma legislatura e servir de eixo de estabilidade numa maioria parlamentar – foi estrategicamente decisiva para a esquerda portuguesa e, em grande medida, repousa nos créditos políticos de António Costa. Mas essa vitória táctica oculta uma derrota política: o projecto de uma esquerda unida enquanto alternativa às “políticas de direita” e enquanto pilar de “defesa do Estado Social” falhou.
A geringonça definiu-se desde a raiz pela reversão da governação anterior, mas foi incapaz de construir uma alternativa política para lá da retórica: mesmo num contexto de retoma económica e de crescimento, a contenção orçamental não se evaporou, como exigiram PCP e BE. Pelo contrário: um dos maiores orgulhos do governo PS tem sido ir além do cumprimento das suas próprias metas do défice, impondo restrições severas na despesa pública – algo que seria também de esperar de um governo PSD-CDS. Claro que, entretanto, houve reposições salariais e até mais contratações para a administração pública nos últimos anos. Mas, objectivamente, essas reposições também estavam previstas no programa de PSD e CDS (mesmo que a outro ritmo). Ou seja, no fundamental das grandes opções da governação, as diferenças entre este governo PS e o que seria expectável de um governo PSD-CDS não são assim tão significativas. Dito de outro modo: por mais que isso desagrade a PCP/BE, Mário Centeno poderia ter sido ministro das finanças de um governo PSD e fazer exactamente o mesmo, que ninguém estranharia.
Na geringonça, sem influência nas opções da política orçamental e europeia, seria de esperar que PCP e BE impusessem as suas prioridades noutros domínios da governação, nomeadamente nas áreas do Estado Social. Mas não é isso que se vê – muito pelo contrário. É sob a vigilância das esquerdas que os transportes públicos, em particular a CP, deixaram de servir adequadamente as populações, sofrendo de insuficiências estruturais materiais e de recursos humanos, e acumulando supressões. É sob a supervisão das esquerdas que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) está à beira do colapso: demissões em bloco, falta de recursos humanos e, de acordo com o Tribunal de Contas, aumentos acentuados do endividamento do SNS, crescimento dos atrasos nos pagamentos a fornecedores, e queda a pique dos fundos próprios do SNS para níveis de há 10 anos atrás. É sob a tutela das esquerdas que as queixas ao Provedor de Justiça contra a Segurança Social subiram em flecha (mais 37% face ao ano anterior no sector das prestações sociais), constatando-se “uma certa degradação da relação entre o cidadão e os serviços públicos”. O ponto de ruptura a que chegou o Estado Social, apesar dos protestos públicos de PCP/BE, demonstra o quão irrelevantes são os parceiros do PS na tomada de decisão política.
Há ainda mais exemplos da irrelevância de PCP/BE na definição das opções políticas do governo – por exemplo, nas alterações às leis laborais, que o PS combinou com o PSD. Esta sucessão de irrelevâncias demonstra que o projecto de uma esquerda unida enquanto alternativa às “políticas de direita” e enquanto pilar de “defesa do Estado Social” é uma ilusão. Afinal, quem manda é o PS e, no domínio político, a geringonça não é mais do que a capitulação das agendas de PCP/BE em troca de algum acesso ao poder, mas nunca de uma real influência na governação – de onde o PS excluiu totalmente os parceiros.
À beira do ano eleitoral, e perante a necessidade de explicar a sua mais-valia política, o que sobra a PCP e BE? Sobra a luta sindical dos professores pela contagem do tempo congelado das suas carreiras. O que está em jogo é, portanto, muito mais do que uma reivindicação sectorial. É uma prova de vida e de influência de PCP e BE: sem nada para mostrar de realmente estrutural até ao momento, a vitória nessa batalha seria o argumento-chave para valorizar o seu papel na geringonça – e pedir votos para as legislativas. Só que essa batalha parece irrevogavelmente perdida, pois, em entrevista ao Expresso, António Costa fechou essa porta. Independentemente do que agora possa acontecer até ao final do ano, nomeadamente na negociação do Orçamento de Estado, também a porta da geringonça se fechou.