A presidência portuguesa assinou, no passado dia 10 de março, a declaração comum entre as instituições – Conselho, Parlamento, Comissão – com vista à realização da conferência sobre “O futuro da Europa”, a iniciar no próximo mês de maio, no dia da Europa, e a culminar, talvez, em 2022. Para lá da retórica política habitual nestas circunstâncias, vejamos algumas reflexões a este propósito.
A Europa passará nesta década por grandes transições – climática, energética, ecológica, digital, demográfica, migratória, socio-laboral, político-cultural – e, neste contexto tão congestionado, deve estar avisada para uma eventual japonização da sua economia, ou seja, a estagnação da procura interna e externa ao longo da década, bem como, a multiplicação de regimes de exceção e cláusulas derrogatórias para lidar com a situação de cada Estado-membro, em particular, devido às dividas públicas e privadas acumuladas durante a pandemia. As crises podem, portanto, suceder-se. Crises de ajustamento macroeconómico na zona euro, acidentes graves devidos às alterações climáticas, novas crises pandémicas motivadas pela circulação de vírus e bactérias, crises cibernéticas em consequência de ciberataques e biopirataria, crises socio-laborais devido à transformação digital e desestruturação dos mercados de trabalho, crises geopolíticas motivadas pela falta de confiança e cooperação internacionais, crises políticas domésticas precipitadas pelo populismo radical e com repercussões sérias no plano regional e internacional. Todas estas crises desencadeiam choques assimétricos sobre as sociedades europeias, economias e regiões mais vulneráveis. Se assim for, a tentação de sair da zona euro e, mesmo, da União poderá crescer todos os dias. Num contexto tão congestionado e de difícil administração, como lidar com as consequências assimétricas destas crises recorrentes?
União Europeia, as questões em agenda para o período pós-pandemia
Numa linha política de governação multiníveis, vejamos alguns assuntos pendentes que podem pôr em causa o “normal” funcionamento das instituições europeias, tal como as conhecemos hoje:
- Em primeiro lugar, como assegurar uma transição justa e não assimétrica, em resultado da aplicação da lei do clima (os efeitos da descarbonização), do plano de ação digital (os efeitos sobre o mercado único e as cadeias de valor), da nova condicionalidade macroeconómica (o mix entre política orçamental e monetária e a revisão do Pacto de Estabilidade e Tratado Orçamental), da reorganização da política industrial e das ajudas de Estado (o impacto sobre fusões, concentrações e aquisições industriais);
- Em segundo lugar, não conhecemos ainda, em todas as suas dimensões, os impactos do Brexit e sabemos como o efeito Brexit pode aumentar o número de países relutantes a aceitar mais Europa; sabemos, ainda, que o Reino Unido era o rosto de uma corrente de pensamento político liberal acerca da Europa e que a sua saída aumentará o risco de exposição de alguns países mais pequenos, que agiam um pouco à boleia do Reino Unido (por exemplo, os países nórdicos); penso, por exemplo, naquelas áreas que irão necessitar de nova regulamentação, harmonização e regulação, uma vez que esta circunstância pode gerar conflitos litigiosos entre as partes;
- Em terceiro lugar, a chamada política de reindustrialização europeia, ainda com muitas incógnitas, em especial, o confronto eventual entre “campeões europeus e campeões nacionais”; uma vez que a União Europeia quer promover mais fusões e concentrações industriais e bancárias com o objetivo maior de criar campeões europeus, podemos estar na iminência de assistir a uma colisão entre os interesses nacionais e os interesses europeus, a propósito, por exemplo, da concessão de ajudas de Estado;
- Em quarto lugar, as sequelas da política monetária quantitativista do BCE. Em particular, a compra de ativos financeiros públicos e privados deixam-nos apreensivos no que diz respeito à “liquidificação” do mercado monetário e, ainda, em que medida esta facilidade excessiva não irá subverter as expetativas dos agentes económicos com inflação e juros mais altos;
- Em quinto lugar, a transição digital e o plano de ação digital e, neste contexto, os novos atos normativos europeus sobre serviços digitais, irão colidir frontalmente com o gigantismo tecnológico das companhias americanas que subvertem as regras da concorrência e do mercado único; estão em jogo interesses geopolíticos da maior importância, veja-se, por exemplo, o impacto das redes 5G e, nesse âmbito, as relações com a China que estão longe de estar reguladas e que suscitarão, ainda, muitos equívocos e controvérsia;
- Em sexto lugar, questões fiscais da maior relevância, tais como os novos recursos próprios, o voto por unanimidade nesta área, os problemas de soberania e extra-territorialidade em matéria de evasão e fraude fiscais, a corrupção e a proteção dos interesses financeiros da União irão permanecer na agenda política europeia e suscitar muita controvérsia;
- Em sétimo lugar, a condicionalidade macroeconómica europeia pós-Covid é um assunto da maior importância para o futuro da União Europeia; se pensarmos que foi necessário suspender o Pacto de Estabilidade e o Tratado Orçamental para lidar com os efeitos da crise pandémica, se pensarmos nos défices orçamentais e na dívida pública acumulados, nas moratórias e nas dívidas bancárias, temos aqui uma bomba-relógio pronta a explodir em qualquer momento;
- Em oitavo lugar, o pilar social europeu, ou seja, as consequências e os impactos sociais sobre a natureza e estrutura do mercado de trabalho e emprego em resultado das transições climática, energética e digital; essa é a razão pela qual a presidência portuguesa realizará uma cimeira social na cidade do Porto, no mês de maio, para debater, justamente, o pilar social e o modelo social europeus, mas, também, a questão paralela do Pacto das Migrações para a década que se avizinha, pois serão, doravante, problemas muito sérios e recorrentes da vida europeia;
- Em nono lugar, a nova geopolítica europeia em face dos novos realinhamentos comerciais e concorrenciais; refiro-me às relações transatlânticas com os EUA da era Biden e o Reino Unido, ao acordo de proteção de investimentos com a China após o grande acordo de comércio no sudeste asiático, e ainda à cimeira com a Índia durante a presidência portuguesa; por outro lado, estes novos realinhamentos alimentarão muitas discussões sobre o neoprotecionismo europeu e a sua pretendida reindustrialização;
- Em último lugar, uma nova Agenda Europeia para a Saúde, não apenas para cuidar das sequelas da pandemia da Covid-19 e o plano de vacinação respetivo, mas, sobretudo, para prevenir as consequências das alterações climáticas e as próximas pandemias para a saúde pública dos europeus.
Em todos estes casos existe um risco elevado de fatores imponderáveis e choques assimétricos entre Estados-membros e, por isso, todos eles reclamam uma abordagem e governação multiníveis para a sua resolução. Se assim não acontecer, podem criar-se divisões políticas graves entre Estados-membros que tornarão inevitáveis, não apenas o crescimento do sentimento antieuropeu, mas, também, o endurecimento das democracias domésticas e a cada vez mais problemática coabitação entre democracias liberais e democracias iliberais.
Uma perspetiva europeia para as “Grandes Opções” da União
Agora que a presidência portuguesa fez aprovar a realização da conferência sobre “O Futuro da Europa”, é importante refletir sobre aspetos politicamente determinantes para a definição da política de condicionalidade europeia que acompanhará a execução do semestre europeu (SE) e dos programas nacionais de reformas (PNR) ao longo da década. E, desta vez, uma política de condicionalidade europeia que promova, em primeira instância, as “Grandes Opções da União Europeia” – o pacto ecológico, a transição digital, a reindustrialização, o mercado único de capitais, o pilar social europeu, a coesão territorial, os interesses e os valores da Europa no mundo – e não uma mera condicionalidade instrumental à maneira do Pacto de Estabilidade e Crescimento, do Tratado Orçamental e do semestre europeu. Só assim se evitará o risco sério de transições assimétricas graves para a coesão das economias dos Estados-membros. Neste sentido, o guião para a nova política de condicionalidade estrutural europeia pós-pandemia deveria levar em linha de conta as matérias seguintes:
- Em primeiro lugar, a quadratura financeira da política de condicionalidade: é preciso reconsiderar a política financeira da União Europeia na próxima década entre novos recursos próprios, transferências dos Estados-membros, mutualização de dívida conjunta e financiamento monetário (BCE) e procurar, em cada momento, o ponto de equilíbrio mais apropriado entre política orçamental, política monetária e política financeira;
- Em segundo lugar, a regulação dos riscos globais e dos principais impactos sistémicos das grandes transições: a União Europeia precisa, talvez, de um observatório para prevenir os grandes riscos, os fatores imponderáveis e os principais impactos das grandes transições climáticas, energéticas, ecológicas, pandémicas, digitais, geopolíticas e securitárias, que podem ocorrer em qualquer momento e causar danos irreparáveis e choques assimétricos muito violentos;
- Em terceiro lugar, a reindustrialização de algumas cadeias de valor europeias: é preciso enquadrar devidamente as alterações à política de concorrência, sobretudo as ajudas de Estado, mas, também, a política de coesão territorial, tendo em vista o apoio a uma política equitativa de reindustrialização de algumas cadeias de valor europeias e a formação de “campeões europeus”, sob pena de se gerarem muitos equívocos à sua volta;
- Em quarto lugar, a política de harmonização legislativa em sentido amplo: é preciso enquadrar devidamente as alterações à política de harmonização fiscal europeia, pois sabemos que a política fiscal é usada como instrumento de incentivo discriminatório à economia, mas, também, a harmonização legislativa e regulamentar em sentido amplo, que precisa de um ângulo de abertura suficiente para conciliar a diferenciação nacional com o reconhecimento mútuo das legislações;
- Em quinto lugar, o novo enquadramento da política orçamental e financeira: é preciso enquadrar, desde logo, os procedimentos por défices excessivos e os ritmos de amortização da dívida pública, em função de regras comuns relativas à execução dos programas europeus de financiamento durante a década; depois, é preciso enquadrar a nova política financeira, não apenas em termos de mercado único de capitais, mas, também, de emissão de nova dívida europeia conjunta tendo em vista, justamente, esta nova política de condicionalidade estrutural; finalmente, a eventual transição do MEE (Mecanismo de Estabilidade Europeia) para um fundo monetário europeu, se não for politicamente possível que o BCE tenha competências financeiras de último recurso, isto é, competências próprias de uma reserva federal;
- Em sexto lugar, o novo enquadramento da política monetária: é preciso enquadrar devidamente as alterações de política monetária em matéria de supervisão e regulação do mercado monetário, da política quantitativa, em especial em matéria de inflação e compra de ativos por parte do BCE, sem esquecer a situação e as condições de capitalização do sistema bancário europeu no pós-pandemia.
Numa linha mais federal, e no que diz respeito à estratégia de crescimento e emprego para 2030, a próxima conferência sobre o Futuro da Europa poderia ser mais inovadora e propor um “Ato Único Federal” de onde se destacariam:
- Em primeiro lugar, os princípios de uma união orçamental: com base em recursos tributários próprios e de acordo com uma “lei de enquadramento orçamental federal” que determinaria a natureza federal do regime orçamental, bem como o reforço substancial do capital do BEI para acrescer o seu efeito de alavancagem junto do mercado de capitais e o alargamento das suas competências como instrumento de financiamento da estratégia 2030;
- Em segundo lugar, a monetarização federal da União Europeia: o que pode significar, no contexto atual, reconsiderar a dívida pública dos Estados-membros na posse do BCE; de resto, sem um Banco Central Federal que seja o financiador de último recurso não haverá, muito provavelmente, meios suficientes para levar a cabo as grandes transições de uma forma harmoniosa e equilibrada durante a próxima década;
- Em terceiro lugar, um New Deal europeu de construção de redes europeias: na linha do que propõe o Pacto Ecológico Europeu (descarbonização, energias renováveis, biodiversidade), o plano europeu de ação digital, mas, também, um novo programa europeu para a saúde pública e a segurança europeia, isto é, tudo o que diga respeito às redes de investimentos inteligentes, sustentáveis e inclusivos; uma Agência Federal para o Crescimento e o Emprego poderia traçar uma linha de equilíbrio de longo prazo e, em consequência, acalmar os mercados financeiros e o respetivo custo de acesso ao capital;
- Em quarto lugar, é fundamental consagrar uma verdadeira política de cidades: que as cidades inteligentes e criativas sejam não apenas uma simples máquina digital ao serviço de uma certa ideia “sobremoderna” de cidade, mas, também, um instrumento de solidariedade social e que, dessa política de cidades, faça parte, também, uma ajuda internacional às redes de cidades pequenas e médias como instrumento fundamental de mutualização de bens e serviços comuns nos países mais pobres e em desenvolvimento.
Notas Finais
A economia-mundo, com uma malha cada vez mais apertada, atingiu um tal grau de interdependência e interação, que qualquer vetor desencadeia de imediato efeitos de ricochete por todo o lado. A Covid-19 é a demonstração disso mesmo. O risco global e o efeito sistémico são, pois, as duas propriedades emergentes mais virulentas da economia-mundo em que vivemos. Ou seja, não resolveremos, em definitivo, nenhum dos grandes problemas enunciados se não tratarmos de curar, também, a sociedade global em que vivemos. Por isso mesmo:
- É fundamental, mais do que nunca, um novo multilateralismo, para uma globalização regulada e uma governação multiníveis reforçada;
- É fundamental uma organização mundial com poderes reforçados para implementar o Acordo de Paris, a transição energética e a formação de comunidades multirrisco;
- É fundamental estabelecer uma nova ordem jurídico-política para a economia digital e uma proteção adicional para os trabalhadores em consequência das profundas alterações introduzidas nos mercados de trabalho, de acordo com os princípios mais elementares de justiça social;
- É fundamental um outro contrato de solidariedade geracional para lidar com o inverno demográfico e as relações entre as gerações;
- É fundamental estar atento aos continentes menos desenvolvidos e à condição humana irrecusável dos seus cidadãos, às migrações e aos refugiados, sob pena de eles nos devolveram todos os seus males em forma muita mais agravada;
- É fundamental que possamos salvaguardar o projeto europeu e a sua legitimidade política, que não deixemos balcanizar a política europeia, pois é o único ator da comunidade internacional que pode, ainda, jogar nos vários tabuleiros que enunciámos.
Para lá das minhas dúvidas sobre o sucesso da Conferência sobre o Futuro da Europa (2022), é, seguramente, mais urgente acautelar a eventualidade de a União Europeia se fragmentar e balcanizar a breve prazo, pois as grandes transições à nossa frente podem desencadear choques assimétricos graves no terreno concreto de cada Estado-membro.
É aqui que nos encontramos, numa verdadeira encruzilhada, face a face, com histórias, culturas, ideologias, influências, economias e políticas domésticas muito variadas. Os próximos ciclos politico-eleitorais em 2021, em particular, na Alemanha e Países Baixos, poderão radicalizar os assuntos europeus e aumentar o risco de balcanização da política europeia. Será absolutamente necessário fazer baixar a ansiedade, a falta de confiança e até o medo, para evitar o crescimento dos populismos iliberais.
Quanto ao resto, vamos ouvir falar da Conferência sobre o Futuro da Europa até 2022 e reabrir longos debates acalorados sobre federalismo europeu e soberania nacional.