Como cá o dr. Costa, o sr. Sánchez mostrou em Espanha que, no que toca à Ibéria, a esquerda não volta a perder eleições. O método é simples. Se o partido socialista (o deles ou o, salvo seja, nosso) ganha com maioria absoluta, os socialistas vão naturalmente para o governo. Se ganha com maioria relativa, os socialistas aliam-se a meia-dúzia de fanáticos disponíveis e vão para o governo. Se perde, os socialistas aliam-se a duas dúzias de fanáticos com toda a sorte de exigências e vão para o governo. O observador distraído diria que o principal partido da “direita”, o PSD ou o PP, beneficia de iguais regalias, mas o observador distraído está enganado.
Isto porque algures nos finais de 2015 entrou em vigor na Península uma lei não escrita, excepto em boa parte dos “media” e nas cábulas dos comentadores avençados, segundo a qual o principal partido da “direita” não pode fazer alianças ou acordos à toa. Aliás, não pode fazer alianças ou acordos de todo, sob risco de “normalizar” (o termo em voga) as forças de “extrema-direita”, conceito nebuloso e flexível que compete aos socialistas estabelecer. Os socialistas podem, e devem, juntar-se a comunistas, trotskistas, independentistas, terroristas, mercenários e, se for o caso, canibais moderados. Os não socialistas estão impedidos de se juntar a qualquer força política a que os socialistas chamem “radical”. “Radical”, no léxico oficioso, não é o partido que nega a existência do Gulag, tenha cadastro na ETA ou reclame a implosão da própria soberania: é apenas o partido que facilite o acesso da “direita” ao poder, ou a “direita” em geral. Conforme as centrais de propaganda dos socialistas explicam pedagogicamente, é assim que funciona o parlamentarismo.
Engraçado: da penúltima vez que vi, as democracias parlamentares eram diferentes. O partido mais votado formava governo e o rival ia para a oposição. Tratava-se de um sistema simples, quiçá simplório, com a agravante de permitir que, de quando em quando, a “direita” vencesse de facto. Sucede que o bem-estar dos povos, ainda que contra a vontade destes, não aconselhava a perpetuação de semelhante desordem e impunha acções urgentes que a impedissem. Vai para oito anos, o dr. Costa, um videirinho típico, estendeu o tapete a trupes de heróicos resistentes à liberdade e o resto é história, a história de duas democracias recentes que resolveram partir em marcha acelerada rumo aos encantos da América Latina.
Claro que, em teoria, há a hipótese de o principal partido de “direita” regressar ao poder mediante maioria parlamentar. Na prática, não há hipótese nenhuma. Por um lado, se acontecesse tamanha desgraça os socialistas arranjariam maneira de a vetar por vias que nem me atrevo a antecipar. Por outro lado, a coisa está inquinada o suficiente para tornar a referida vitória impossível. Em Espanha e aqui, ambos os partidos ditos de “extrema-direita” são fundamentais à estratégia, já que cativam votos, inúteis na medida em que não são utilizáveis em eventuais pactos. Por isso o PS e o PSOE não se calam com a “ameaça” do Chega e do Vox, respectivamente: estes são a garantia de que 10% ou 15% dos eleitores à “direita” não são tidos em conta no apuramento dos resultados. Para cúmulo, a “fatwa” socialista aterroriza tanto os principais partidos de “direita” que estes, na ânsia de se distinguirem dos “radicais”, com frequência se esquecem de se distinguir do socialismo. A consequência é verem fugir descontentes para os “radicais” (que pelo menos berram protestos sortidos) e apáticos para os socialistas (que pelo menos são o produto original).
Nada disto é fácil. Se são brutalmente incompetentes ou deliberadamente daninhos a governar, os socialistas são bastante hábeis a encher de absurdo a realidade. Só dessa forma se consegue convencer um pedaço significativo da sociedade de que as “extremas-direitas” locais, sem dúvida agremiações difusas e contraditórias, constituem um perigo maior do que bombistas mal reformados, fugitivos da justiça e os seus simpatizantes aquém de Badajoz. Torcer a percepção das massas dá trabalho, dá trabalho e dá emprego a socialistas, avençados dos socialistas e inúmeros “independentes” que, fora as televisões, semanalmente assinam artigos ou “tweets” a exaltar as virtudes do “centro”. O “centro”, escusado informar, é o lugar designado pelos socialistas, eles mesmos tão embrenhados na ideologia que hoje atropelam leninistas diversos. O “centro” está a meia expropriação de distância das manas Mortágua e dos venezuelanos do Podemos. O “centro” mudou a ponto de Chega (quase sempre) e Vox (tem dias) serem, na economia, socialistas banais.
E pronto. É verdade que, com a cumplicidade de muitos, a ambição de uma parelha de nulidades sem escrúpulos enfiou Portugal e Espanha num vórtice capaz de dilacerar dois países, um pela miséria, o outro pela literal divisão física. Mas é um erro supor que o problema é pessoal. Atrás do dr. Costa e do sr. Sánchez encontram-se, em fila de espera, uma resma de irresponsáveis iguais e igualmente dispostos a tudo, incluindo a aproveitar o jogo viciado que não os deixa sair derrotados. A derrota cabe à “direita”, enquanto a “direita” jogar.