O Movimento Zero, que conta com o apoio de efectivos da Polícia de Segurança Pública (PSP) e da Guarda Nacional Republicana (GNR), é uma ameaça à segurança interna de Portugal em tudo semelhante à que o Movimento dos Capitães representou para a ditadura.

Ao mesmo tempo, é também um desafio directo ao Estado, a que este possivelmente não quer ou não consegue responder.

O Movimento Zero não é uma ameaça porque tem como objectivo causar directamente perigo ou dano aos cidadãos portugueses, ou porque tem como objectivo usar força directamente contra o Estado.

O Movimento Zero é neste momento a maior ameaça para a segurança interna devido à sua natureza e, fundamentalmente, devido ao que conseguiu convencer os seus apoiantes que representa e centraliza.

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O que o Movimento Zero conseguiu que todos os seus apoiantes acreditassem que é o seu património fundamental é o combate contra a desvalorização total do papel dos polícias na sociedade portuguesa, e o combate desesperado contra o antagonismo ou indiferença que os partidos políticos e uma larga faixa da sociedade lhes devota, encerrando-os no que o Movimento Zero defende ser um reduto.

Assim, o Movimento Zero é uma ameaça porque coloca dois problemas gigantescos ao Estado.

O primeiro é o de que neste momento está viva e acesa uma cultura em duas forças policiais de nós, os polícias, e eles, os políticos e a população.

O segundo é o de que o Estado, e especialmente este Governo, têm para resolver qual o lugar da autoridade e do uso legal da força na sociedade portuguesa contemporânea.

Para que consigamos entender melhor, mas não exaustivamente, o que está fora do meu conhecimento, a ameaça que representa o Movimento Zero, temos de cruzar várias dimensões.

Antes de tudo o mais, temos de entender a natureza central da entidade.

A melhor definição que conheço é a de Appadurai, que escreveu estarmos perante entidades “conectadas mas não geridas verticalmente, coordenadas mas notavelmente independentes, capazes de replicação sem a existência de directivas provenientes das estruturas centrais, incertas nas suas características organizacionais nucleares, mas cristalinas nas suas estratégias celulares e nos seus efeitos e ligadas por mecanismos sombrios a outras redes sem nome com tentáculos espalhados pelo mundo”.

Ou seja, são entidades que pertencem, tal como a Extinction Rebellion ou o Black Bloc, para nomear apenas as com presença em Portugal que conheço melhor, à categoria de “movimentos sem liderança” ou de “resistência sem liderança” para usar os termos mais comuns, e sobre os quais a Wikipédia permite uma boa introdução.

Aliás, é o próprio Movimento Zero que de modo cristalino assume esta identidade, ao escrever no seu manifesto no Facebook, a única plataforma aberta que alimenta, “O Movimento Zero não tem representantes… Não há rostos… Não há vozes…Não há sindicatos… Não há postos… Não há categorias… Movimento Zero somos Todos Nós…”.

Assim, para nos centrarmos apenas no essencial, o Movimento Zero tem perto de 58 mil apoiantes registados mas não identificados, presença ou adesão nas estruturas físicas de segurança no território nacional, uma capacidade de sobrevivência igual ao número de efectivos policiais que adiram ao movimento, porque exactamente não tem liderança, e a possibilidade de usar, como usa, as plataformas digitais de partilha e comunicação para criar, disseminar e fazer cumprir estratégia, táctica e acção.

Por outras palavras, não é uma entidade eliminável enquanto considerar que há razão para lutar pelo seu património, que já identifiquei neste texto.

O Movimento Zero tem ainda apoiantes permanentes e pontuais que não têm medo de dar a cara e exercer acção, e uma prática permanente no tempo, como bem assinala Hugo Franco.  Além disso, se analisarmos a acção visível do movimento, vemos, pela linguagem, pela atenção à comunicação, pela perícia tecnológica e pela escolha de natureza, que é dinamizada por efectivos policiais jovens e com traços culturais totalmente distintos dos seus superiores com patente a partir de intendente e de coronel.

Ainda na dimensão da natureza da entidade, falta-me conhecer vários enigmas, que são igualmente muito importantes. Há para começar o facto inédito de quadros policiais da PSP e da GNR estarem juntos numa plataforma de acção. E, no mesmo território, há para continuar o facto de que não estão presentes, pelo menos de forma assumida, quadros da Polícia Judiciária, do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e, especialmente das Forças Armadas.

A possibilidade de os quadros das instituições referidas, que partilham o mesmo património, aderirem ao movimento será um dos dados mais importantes a observar. Do mesmo modo, é fundamental desatar o enigma da patente dos quadros do movimento. Se estiverem presentes, ou virem a estar presentes, subchefes, no caso da PSP, e sargentos e tenentes, no caso da GNR, esta é igualmente uma peça crucial.  E, por outro lado, é deveras intrigante a capacidade financeira do movimento para investir em produtos de comunicação, especialmente as já lendárias pulseiras.

O enigma menos importante é o da possibilidade de tomada de controlo do movimento pela extrema-direita. Aqui, convém reter que no campo dos valores a maioria dos efectivos policiais são politicamente conservadores, mas acima de tudo fiéis à sua instituição e aos seus camaradas, ou seja, o espírito de corpo domina o edifício ideológico de cada um. Sem dúvida que as várias configurações grupais e actuais da extrema-direita, nacionais e globais, estão a fazer o seu trabalho de penetração, mas, penso, só irão atingir nichos do movimento, porque irão encontrar barreiras ideológicas, morais e estratégicas.

Dissecado o essencial, para mim, da natureza da entidade, abre-se o espaço para conhecer o possível das duas dimensões decisivas restantes do fenómeno, o grau de ameaça do Movimento Zero e as hipóteses de gestão do Estado.

O grau de ameaça do movimento está dependente do rumo estratégico a curto e médio prazo do movimento. O drama estratégico do Movimento Zero é o de que não pode usar as ferramentas nucleares dos “movimentos sem liderança”, especialmente as manifestações regulares descentralizadas ou coordenadas em espaço público e toda a outra panóplia de actos de impacto junto da população e contra o Estado. Ou seja, não pode exercer acção pública, porque se o fizer irá pagar o preço de convocar liderança e protocolo, especialmente o legal.

Assim, resta-lhe, para sobreviver, para cativar os seus apoiantes, e para ocupar o espaço político, corporativo e mediático, a acção interna, isto é, dentro das instituições e das funções policiais. Esta acção interna pode passar, dependendo de um número vasto de momentos e de circunstâncias, por actos localizados ou generalizados, coordenados ou espontâneos, de recusa de cumprimento do dever, ou de desobediência ou de paralisação. O que levará a um confronto, pontual ou prolongado, passivo ou activo, com os comandos funcionais e os decisores políticos.

Se algum destes cenários se materializar, os corpos a quem legalmente e funcionalmente está atribuída a protecção dos cidadãos ficarão paralisados ou desactivados. E ficarão, simultaneamente, em confronto directo com o Estado. Para não falar para já das cicatrizes que serão produzidas por estes confrontos. Daí ter escrito que o Movimento Zero é a maior ameaça à segurança interna que enfrentamos.

Resta-nos então a dimensão da resposta do Estado, especialmente dos decisores funcionais e políticos em funções. O que conheço desta dimensão, infelizmente, é um denso nevoeiro tóxico de falhanços que se instalou há décadas. A primeira camada de nevoeiro tóxico é a de que é preciso conhecer a cultura policial para entender que a existência do Movimento Zero representa, só por si, o falhanço total dos comandos gerais, e em menor grau dos comandos territoriais e locais.

Há uma parte deste falhanço que não é responsabilidade dos comandos referidos. Os seus objectivos são avaliados e decididos pelos decisores políticos. Mas há uma parte deste falhanço que é da responsabilidade dos comandos de topo. Nunca quiseram nem conseguiram unir as forças de segurança numa plataforma unida de luta, a única capaz de perturbar os decisores políticos. Nunca quiseram ou nunca souberam partilhar a informação que possuem que mostra a verdadeira realidade do trabalho dos seus homens.

A título de exemplo, uma estatística sobre o número de adolescentes alcoolizados identificados anualmente, conjugada com o número anual desses adolescentes e respectivas famílias que sofreram sanções cíveis ou penais, ou a estatística sobre o número de intervenções anuais em bairros sociais, conjugada com o número anual dessas intervenções que deram origem a confrontos, daria aos cidadãos portugueses uma imagem muito distinta da actualmente existente do que é hoje o trabalho de segurança.

A segunda camada de nevoeiro tóxico é, claramente, a criada pelos decisores políticos das últimas duas décadas. Antes de tudo o mais, os decisores políticos fogem, ignoram intencionalmente ou fingem desconhecer que o sistema de segurança português é disfuncional, essencialmente a capacidade financeira estatal é totalmente insuficiente para os recursos humanos e paras necessidades operacionais e logísticas existentes, uma equação decisiva que me ocupa há muito tempo.

Agindo assim, os decisores políticos adiam há mais de duas décadas a reforma necessária ao sistema de segurança, fundamentalmente porque temem os efeitos directos negativos e conhecem a ausência de efeitos políticos directos positivos. Isto é, sabem que a reforma vai trazer revolta no sistema de segurança, mas sabem acima de tudo que a reforma não vai trazer ganhos políticos, por indiferença da maioria dos cidadãos.

O que nos leva para outro ângulo do tema, que é o da cultura que os decisores políticos portugueses, especialmente, mas não exclusivamente, os de esquerda, cultivaram nos cidadãos em democracia.

Por razões culturais e ideológicas, por vezes, por razões instrumentais, por outras vezes, o papel e o lugar dos corpos de segurança na sociedade portuguesa nunca foram suportados pelos decisores políticos.

Tem sido, e continuará a ser, um tremendo erro político estratégico. Antes do mais, porque uma polícia ignorada funcional, financeira e legalmente é uma polícia deficiente. Isto é, só tem capacidade para resolver os crimes menos complexos, o que cria uma enorme desigualdade social, como podemos observar todos os dias. E, depois, porque uma polícia ignorada acaba, mais tarde ou mais cedo, por dar origem a movimentos zero.

Mas a mais densa camada de nevoeiro tóxico gerada pelos decisores políticos é a da sua desistência na procura de um equilíbrio entre a tolerância e os direitos individuais, por um lado, e o lugar da autoridade e do uso legal da força numa sociedade democrática, por outro lado.

O problema é que os decisores políticos vivem em torres de marfim. Não conhecem, e muito menos têm capacidade para reflectir, que o património fundamental de luta do movimento zero é totalmente idêntico ao património dos professores, para nomear um exemplo, ou o dos operadores dos transportes públicos, para dar outro exemplo mais localizado, mas não menos representativo.

O património que colocou ou ainda colocará os referidos profissionais em luta tem como alvo que hoje na sociedade portuguesa há uma convicção alargada, ou um convencimento táctico alargado, de que os direitos se sobrepõem aos deveres, de que não há consequência para os actos, quaisquer que eles sejam, e que o exercício da autoridade e da força é inadequado, ilegítimo, desproporcional e forçado, quaisquer que sejam as circunstâncias.

Compreende-se que os decisores políticos não pensem e não decidam sobre este tema. Fazê-lo era agir contra uma larga maioria de cidadãos e de famílias, isto é, contra uma larga percentagem de eleitores que, convicta ou instrumentalmente, adoptaram a cultura nomeada.

Não há um modo simples de sair da ameaça e do desafio criado pela existência do Movimento Zero. O Estado irá avaliar primeiro se o número de apoiantes na plataforma digital do movimento corresponde ao número de apoiantes em acção do movimento, e se os efectivos militares e de outras forças de segurança não aderem. Irá, também, possivelmente, negociar com os sindicatos para satisfazer algumas das reivindicações materiais. E irá, claro, deixar passar o tempo.

O que é a pior estratégia para extinguir o movimento zero, porque irá gerar o seu aumento de aderentes e a sua vontade de acção. Na verdade, penso eu, o que está em combate não é um corpo político, social e profissional, mas um modelo de sociedade.