Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa vão por regra ver os jogos da seleção de futebol em grandes competições internacionais. Percebo que gostem de futebol, eu também gosto, mas as declarações iniciais de Marcelo e Costa a justificar as viagens são criticáveis e geraram compreensível polémica, dando a entender que, fosse onde fosse o Mundial, o que importava, sempre, era ir apoiar a seleção. ‘Vamos é ver a bola’ é uma lógica tentadora e simples, mas evidentemente errada. Em todo o caso, esta polémica chamou a atenção para alguns pontos interessantes neste triângulo: futebol, política, Qatar.

Futebol, alienação e sportswashing

Não subscrevo a velha tese da alienação das massas pelo entretenimento, como se não fosse saudável termos distrações. Cabe a cada um de nós não se deixar entreter ao ponto de pôr de lado valores e interesses mais altos. Também não compro a mitificação do futebol amador ou pouco profissional, de pior qualidade e que não proporcionava condições dignas a jogadores talentosos, mas pobres. Também não é verdade, tanto quanto sabemos, que Salazar fosse um particular fã de futebol (ou de fado), e é evidente que não foi por causa da bola ou da música que a ditadura durou tanto tempo em Portugal.

Dito isto, estou ciente de que vários regimes autoritários, de esquerda e direita, usaram e abusaram do desporto, em geral, e dos grandes eventos desportivos, em particular, para tentar melhorar a sua imagem. É o chamado sportswashing: a tentativa de limpar o sangue duma ditadura pelo desporto. Exemplos famosos incluem os Jogos Olímpicos de 1936, na Berlim nazi, os de 2008 na Pequim comunista. Entre os Mundiais de futebol temos os exemplos de 1934 na Itália fascista, de 1978 na Argentina da junta militar, e de 2018 na Rússia de Putin.

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A política do futebol

É verdade que o Qatar, onde se realiza este polémico Mundial, não é uma democracia pluralista. Segundo a avaliação da Freedom House, o Qatar não é um país livre, e tem uma classificação de apenas 7 em 40 em direitos políticos, e 18 em 60 ao nível dos direitos fundamentais. O país tem uma constituição desde 2005, e as primeiras eleições parlamentares tiveram lugar apenas em 2021, possivelmente, em parte, em antecipação de críticas por causa do Mundial, mas grande parte do poder continua concentrado nas mãos do Emir. Esta é a norma na maior parte do Golfo Pérsico-Arábico, onde petroestados muito ricos não precisam de cobrar impostos e prestar contas do seu gasto à cidadania, antes podem recompensar a lealdade com subsídios generosos. E na maior parte do Médio Oriente islâmico prevalecem regimes legais que só variam no maior ou menor grau de discriminação das mulheres, dos homossexuais e de várias minorias.

A este respeito há que reconhecer que não faz sentido, ao mesmo tempo, defender que grandes eventos globais como o Mundial não podem continuar concentrados nos países do costume, e ignorar o facto de que em muitos países fora do espaço euro-atlânticos os direitos laborais, ou a igualdade de direitos das mulheres, dos homossexuais, de minorias várias, estão pouco ou nada garantidos. Tendo em conta quanto custa organizar um Mundial, e como a FIFA se revelou vulnerável à corrupção, é bem possível que vejamos muitas petroditaduras a organizar o evento no futuro.

Sim o sucesso da seleção ajuda a dar visibilidade global ao país, mas também é evidente que o desporto profissional, em particular o futebol, envolve demasiados recursos, mobiliza demasiadas pessoas e demasiadas emoções para não ter – também – uma dimensão política. Qual deve ser o princípio fundamental na política do futebol? É claro que o futebol não pode estar acima da lei, e que as vantagens que receba do Estado devem resultar num retorno para o país. Todas as seleções devem ser apoiadas pelo Estado, como meio de promover o desporto e a imagem do país no Mundo, não como um fim ou uma prioridade em si mesma.

O que fazer?

Não podemos fazer negócios apenas com democracias pluralistas exemplares. No caso do gás natural isso significaria que apenas podíamos comprar à Noruega e os EUA, que estão longe de sozinhos poderem abastecer a Europa. Mas o Qatar, que tem as terceiras maiores reservas mundiais de gás, também precisa de bons clientes, e não vi, para já, sinal de que recusará um negócio vantajoso por causa da presença ou ausências de VIPs no seu Mundial.

Considero importante manter pontes, sobretudo com sociedades mais fechadas, e até por isso não devemos apenas jogar ou participar em competições desportivas com democracias exemplares. Agora, estes não são apenas eventos desportivos, têm uma dimensão política e diplomática, que fica clara precisamente com a presença de chefes de Estado e governo. E é claro que faz sentido discutir qual deve ser o nível da representação oficial de cada país em função dos valores e interesses que devem orientar a respetiva ação externa.

Há quem defenda que não deveria haver qualquer visita de Estado ao Qatar neste contexto. É uma posição possível. Outra, que eu tenderia a favorecer, seria reduzir o nível destas deslocações, por exemplo ao responsável da pasta do desporto, e enviar uma delegação de mais alto nível apenas se houver uma final nacional, e usá-la para promover outros interesses, deixando também clara a crítica a aspetos mais criticáveis. Até é possível defender uma posição de Realpolitik e defender estas deslocações desde que sirvam para promover negócios importantes ou a realização na Península do Mundial de 2030. Esta parece ser a postura na vizinha Espanha. O que não é aceitável é tratar estas deslocações como se fossem a deslocação de um grupo de fãs VIPs. Elas devem resultar de uma ponderação da forma como contribuem ou não para a promoção dos valores e dos interesses que mais importam ao país. Para a próxima semana voltaremos ao falar do Qatar, um país pouco conhecido mas com um percurso muito interessante!