1. O malogrado John F. Kennedy foi presidente dos Estados Unidos durante cerca três anos, tendo sido assassinado em novembro de 1963. Muitos dos alegados feitos são realisticamente diminutos face ao curto tempo em que esteve na Casa Branca. Há, contudo, uma decisão que perdurou no tempo e que permitiu compreender um momento fulcral do século XX: a crise dos mísseis de Cuba — que por pouco não terminaram numa III Guerra Mundial.

Durante o verão de 1962, Kennedy decidiu montar um sistema de gravação na Casa Branca e na sua própria secretária, na Sala Oval. Com a autorização dos serviços de informações, o presidente tinha inclusive um sistema de gravação dos seus telefonemas.

Foi este sistema de gravação, ativado pelo próprio Kennedy no que à Sala Oval dizia respeito, que permitiu ao historiador Ernest R. May e ao diplomata Philipe D. Zelikow escreverem o livro “The Kennedy Tapes” em 1997 — após as respetivas gravação terem sido desclassificadas pelo Governo. Tem 728 páginas e relata todos os diálogos (sim, diálogos, ipsis verbis) que o presidente John Kennedy teve com todos os membros do seu Governo (com destaque o vice-presidente Lyndon B. Johnson, o secretário de Estado Dean Rusk, o secretário da Defesa Robert McNamara e restantes membros da administração). O mundo esteve à beira de uma Guerra Nuclear e, quem quiser, pode saber tudo ao mais ínfimo pormenor lendo a obra de May e Zelikow — uma homenagem pura às virtudes da democracia liberal que defende a memória histórica.

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2. Vem isto a propósito do mais recente livro de Cavaco Silva, “Quinta-feira e outros dias” — o segundo volume das suas memórias políticas que atravessam o período 2011-2015 e que representam um contributo valioso para o estudo daquele período histórico. Do lado do PS, logo surgiu Carlos César, o presidente do próprio partido, a clamar contra a obra por denotar “falta de sentido de Estado”, “devassa” e, imagine-se, “um mau princípio de delação de assuntos que deviam estar na área do Estado e da reserva”. Da boca de Carlos César, o presidente de todos os socialistas, saíram os maiores insultos possíveis e imaginários para Cavaco.

Não está aqui em causa o PS e a esquerda em geral terem uma visão crítica em relação aos mandatos de Cavaco Silva — o pluralismo é sempre essencial em democracia. Está aqui em causa, sim, o facto de os socialistas contestarem o direito, e até mesmo a liberdade, de Cavaco Silva produzir uma obra sobre a sua visão e o seu testemunho sobre o período essencial do terceiro resgate da III República. Repetindo preconceitos antigos com o mesmo guião.

Vamos deixar de lado o óbvio: Mário Soares e, nomeadamente, Jorge Sampaio também escreveram as suas memórias políticas e revelaram segredos, conspirações e diálogos que tiveram como líderes do PS ou como Chefes de Estado. Como todos os ex-primeiro-ministros e ex-Chefes de Estado do mundo ocidental fazem após saírem dos respetivos cargos. Basta lembrarmo-nos de Obama, Clinton, George W. Bush, David Cameron ou Jaques Chirac, entre tantos outros. Deixar um testemunho sobre o exercício de altos cargos políticos é um dever em qualquer democracia.

Concentremo-nos, portanto, no essencial. E aqui só existe uma palavra: segredo.

A queda para o secretismo, o oculto e o obscuro é algo que atravessa boa parte dos políticos portugueses, particularmente a geração que ainda viveu alguma coisa do Estado Novo. Se os portugueses continuam a ter um receio, temor mesmo, da autoridade do Estado, os políticos querem sempre manter os seus segredos longe da curiosidade da Opinião Pública. Não só têm medo do escrutínio, como fazem tudo para que ele não exista. Porque acima de tudo receiam a palavra-chave da democracia: transparência — que é antítese do segredo.

Na ótica dos socialistas, é, portanto, possível que a Opinião Pública norte-americana (e o resto do mundo) saiba todos os pormenores do que aconteceu durante 13 dias em que o mundo esteve à beira do fim mas é impossível que os portugueses conheçam testemunhos diretos sobre a relação de um Presidente da República com diversos primeiros-ministros que nunca estiveram protegidos por qualquer segredo oficial — “falta de sentido de Estado!”, acusam de dedo espetado.

Se havia dúvidas sobre como o salazarismo ainda hoje influencia a mentalidade da sociedade portuguesa, aqui está uma boa prova.

3. Pedro Nuno Santos é secretário de Estados dos Assuntos Parlamentares da Geringonça. Filho de uma família abastada com um grupo industrial na zona de São João da Madeira, Pedro Nuno partilha com o pai uma paixão de carros. Vai daí, enquanto Américo Santos prefere Maseratis, o filho gosta de Porsche, nomeadamente do modelo clássico 911.

O problema — ou, pelo menos, é um problema aos olhos de Pedro Nuno — é que isso foi notícia, o que obrigou o socialista a colocar o carro à venda. Na entrevista que deu ao Observador, o secretário de Estado revelou que já tinha vendido o carro e justificou: “Julgo que é um mau sinal, que não é coerente com aquilo que quero fazer e com a forma como quero estar na política. É obviamente uma despesa que, para mim, é superflua — atenção, respeito toda a gente. Mas era superflúa e não se justificava”, disse.

É absolutamente extraordinário que Pedro Nuno Santos, um dos melhores membros deste Governo e da sua geração, entenda que tem alguma espécie de obrigatoriedade ética de vender uma viatura para a qual tem meios legítimos para adquiri-la. Por várias razões:

  • Seja por via de herança ou doação do pai, seja por via do seu trabalho, o Porsche 911 configura o seu mérito (e o da sua família);
  • Logo, Pedro Nuno não tem de ter vergonha de possuir uma viatura de luxo, nem isso é proibido para um governante;
  • Já a parte da incoerência, é um mistério. Pedro Nuno Santos pretenderá fazer alguma guerra comercial à Porsche (ou a marcas de luxo) ou converter-se ao PCP?

Este episódio revela, uma vez mais, ideias um pouco perigosas sobre o direito à propriedade e a relação da Geringonça com aqueles que têm mais — um pouco na linha do “temos de perder a vergonha de ir buscar dinheiro a quem está a acumular” de Mariana Mortágua.

Ou seja, em vez de promover o progresso económico, obstaculiza-o. Em vez de defender o investimento privado, afoga-o em impostos e taxas. Em vez de incentivar o investimento e o sucesso empresarial, esconde-o. E em vez de encarar a riqueza legítima como algo natural, moraliza-a. Nada de mais errado.

Pedro Nuno Santos deve preferir (para ser coerente) que o Estado subsidie as famílias e as empresas para que a redistribuição da riqueza se faça por esse caminho — e seja mais fácil ter umas chaves de um bem-dito Porsche 911. Mesmo que o Estado não tenha meios nem fundos para isso.

Eu prefiro viver num país em que os portugueses tenham cada vez mais Porsche 911 mas desde que o paguem do seu próprio bolso, assim como os respetivos impostos. Será um sinal claro de que as empresas e as famílias serão mais produtivas, faturarão mais e terão maior poder de compra — e não precisarão do Estado para nada.