Esta última semana tem sido voraz nos títulos da imprensa, nos media: do escândalo no ministério das Infraestruturas, que culminou com a prestação de João Galamba na CPI, às declarações de Cavaco Silva e a orquestrada resposta do Partido Socialista, passando pelo processo Tutti-Frutti e as inenarráveis respostas do Primeiro-Ministro no Parlamento, para culminar na recusa do grupo parlamentar do PS em apresentar as notas sobre a TAP requeridas a Frederico Pinheiro, entre outras recusas.
Tenho escrito repetidamente sobre as perdas democráticas que temos vindo a sofrer nos últimos oito anos. Não creio que tenha escrito o suficiente sobre relativismo moral.
O meu avô e a minha avó eram tão diferentes quanto um homem e uma mulher podem ser pelas definições da natureza e das circunstâncias. Onde um era baixo, a outra era alta. Se ele era moreno, ela muito loura. Olhos líquidos de pretos, um, e verdes de musgo, outra.
E no resto como nisto.
O pai deste meu avô, o meu bisavô Manuel, que tinha um pato de estimação que ia atrás dele para todo o lado, era um homem pequeno, seco e compacto, de um cabelo queirosiano: uma escova branca e rija. E de uma voz baixa e mansa cuja autoridade se fazia ouvir por todos os lados: na pontualidade, na distância do respeito e em mais que tudo no silêncio em volta. Era como tinha de ser, afinal foi ele quem recusou o que a vida lhe deu de herança, nada, para inventar uma vida para os filhos que haveria um dia de ter. Queria-os sólidos para garantir que aguentariam caso, como nas casas dos três porquinhos, o lobo soprasse forte. Queria-os, sem liberdades, para a engenharia, coisa segura.
Porém, o seu filho mais novo, o meu tio António, tenor e doente de nascença, encheu-lhe a casa de música e daquela inexplicável doçura de quem ama e vê a beleza toda pelas frestas do quotidiano por saber que cedo vai perdê-la. O meu avô era igual no desalinho da carreira, apaixonado pelo desenho e pela pintura, e adorava o seu irmão António – digo assim porque era assim que ele dizia, «o meu irmão António», a vida inteira ao lado dele esta mancha luminosa e a religião da Deutsche Grammophon para o invocar pelo lado de dentro de outras vozes, talvez mediúnicas. «O meu irmão António».
Ora, o meu bisavô não podia dar-se ao luxo de educar estetas e, ao meu avô, fechou-lhe as portas das Belas Artes. O meu avô desde esse dia não riscou um traço. E tinha uma grande implicância com o amadorismo e a criatividadezinha.
Uma vez, há muito tempo, era pequenina, ainda existia a 4ª classe, ganhei um prémio. Naquela altura chamava-se fazer redacções. Num máximo de 25 linhas tinha de contar-se uma história. A Irmã mandou-me fazer o texto para o concurso. Todavia deu-me indicações precisas: não quero cá as coisas que costuma escrever, ouviu? Trate de fazer um conto com fadas ou sereias, percebeu? E que ninguém morra, muito menos afogado, ninguém adoeça, nem fantasmas, nem pescadores, nem a Nossa Senhora, nem sapatos de sevilhana, nem panelas de pressão. Um dos meus maiores defeitos sempre foi ser bem mandada.
Segui quase todas as instruções – da morte ninguém escapa. Entreguei a redacção e ganhei o prémio. A coisa foi para jornal.
E o meu avô disse-me: fico muito contente que tenha ganhado o prémio para o seu colégio. Mas teria muito mais orgulho em si se o tivesse perdido.