«Não há nenhum país que tenha caminhado para o futuro sem sacrifícios, sem austeridade. Porque há dois aspectos fundamentais nesta coisa do dinheiro: há o investimento e há o consumo. É claro que um trabalhador que ganha pouco gasta tudo no seu consumo. Mas aqueles que ganham mais já podem reservar alguma coisa de parte. Assim também um país que produz mais já pode reservar mais de parte. Para quê? Para o investimento, não para o consumo. Nós hoje estamos a consumir mais – e bem mais – do que as nossas possibilidades.»

O excerto podia ser de Jeroen Dijsselbloem, o antigo presidente do Eurogrupo que acusou os povos do sul da Europa de gastarem tudo em «copos e mulheres». Mas não é. Podia ser de Passos Coelho, o antigo Primeiro-ministro a quem se atribui a frase que dizia que os portugueses tinham andado a viver acima das suas possibilidades. Mas não é. Podia ser de Vítor Gaspar, o antigo ministro das Finanças que foi porta-voz de medidas de austeridade para responder a um Estado que não tinha dinheiro para pagar salários e pensões. Mas não é. A frase é do antigo Primeiro-ministro Vasco Gonçalves, durante uma «Campanha de Dinamização Cultural e Acção Cívica» realizada pelo Movimento das Forças Armadas no Sabugo, em Fevereiro de 1975. E é esmagadora a diferença do seu discurso para a mentira duradoura em que se especializou o Partido Socialista sobretudo desde os tempos de José Sócrates – e respectivo séquito que, de resto, aí continua incólume a debitar opinião e a administrar a coisa pública. Essa mentira permanente passou a ser tratada como «narrativa», ou seja, é ela própria uma mentira na medida em que não é designada com a expressão correcta. Vasco Gonçalves, comparado com a actual situação, parecia um estadista digno e verdadeiro.

Repare-se: não importa que os socialistas tenham governado como governaram, apesar dos tempos favoráveis, entre 1995 e 2001, porque a essa evidência responde-se com Cavaco Silva e invocar o seu nome basta; não importa que os socialistas tenham governado como governaram entre 2005 e 2011 e que esse Governo tenha sido liderado por um, vá, alegado criminoso que, no mínimo, fazia uma vida faustosa com dinheiro que não era dele, porque a esse argumento responde-se não com factos, mas com Passos Coelho, a troika e a famosa austeridade; não importa que José Sócrates tenha chamado a troika, que tenha negociado o memorando de entendimento e que tenha sido o seu Governo a inaugurar a austeridade e os cortes de rendimentos, porque a esse facto responde-se com a invocação, novamente, de Passos Coelho que, mais do que gerir uma bancarrota, quis, segundo a narrativa, provocar a miséria generalizada dos portugueses por mera crueldade; não importa que esse Governo tenebroso de Passos Coelho tenha, afinal, evitado o papão do segundo resgate, que tenha deixado um país já a crescer e o desemprego a diminuir, porque a «narrativa» afirma que esse crescimento e esse menor desemprego só se iniciou quando os portugueses viram nascer a geringonça; não importa que o PS esteja a governar há 7 anos e que o seu legado seja um país a divergir da Europa, porque a «narrativa» invoca a pandemia e as crises disto e daquilo, como se o resto da Europa não tivesse passado pelo mesmo. Não importa nada, na verdade, porque como quem domina a linguagem domina tudo, incluindo a verdade, a psicologia da crise passou a recair exclusivamente sobre os ombros da direita.

Quem quer saber que os anos de maior crescimento e convergência europeia se deram com Cavaco Silva? Ou que a aproximação ao modelo de democracia e sociedade europeus se deve a personalidades como Mário Soares ou Sá Carneiro? Segundo a «narrativa», o próprio legado de Soares é já hoje, também ele, sujeito à irrelevância e ao desprezo político – afinal, houve um acordo com radicais de esquerda e os últimos comunistas da Europa que carece de defesa, e a herança do soarismo ofende o oportunismo do presente.

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A «narrativa» prossegue o seu curso a propósito do chamado pacote anti-inflação. No Parlamento, a ministra Ana Catarina Mendes afirmava que o Governo anunciava aumentos quando, em circunstância idêntica, um Governo da direita anunciaria cortes. Não importa que os aumentos anunciados sejam, afinal, efectivos cortes, repare-se. Não. A ministra tem razão: a linguagem estava criada de forma que os portugueses não sentissem a verdade que, em bom rigor, têm pouco interesse em conhecer. E isso, sendo um desastre em termos morais e uma mentira política, é por certo mais uma das habilidades que a imprensa observa com uma estúpida admiração e que oferece aos socialistas reais vitórias políticas – no sentido em que a política é exclusivamente aquilo que se tornou para o mais cínico dos líderes socialistas, isto é, a mera conquista e permanência do poder. É o que temos e é, ao que parece, do que gostamos.

Este cenário, porém, só é permitido porque a direita é o que é – e aqui não há excepções. A direita tem muitas dificuldades em contrariar o PS, em bom rigor, porque não tem as mesmas condições para jogar o jogo da conquista do poder, em primeiro lugar, e porque não sabe sequer o que quer, em segundo. É isso que a leva a cair muitas vezes no ridículo de criticar o Governo por fazer o que ela própria faria, ou fez, em circunstâncias semelhantes. Porque não tem, em concreto, um programa alternativo. A direita não sabe que país quer ter – e muitas vezes parece nem saber que país tem pela frente. E isso não é só dramático em termos de alternativas democráticas: é penoso para quem assiste.

Quando o Governo anunciou que o novo ministro da Saúde seria Manuel Pizarro, o líder do PSD veio a público afirmar que o Governo estava já a matar o novo ministro, na medida em que António Costa tinha afirmado que a mudança de ministro não implicaria mudança de políticas. O PSD não tem um programa, não tem uma ideia do país que quer ter daqui a 10 anos, não tem uma política para a saúde, não sabe o que fazer com o SNS para além de umas frases feitas sobre as PPP, e quer que as pessoas levem a sério o seu líder quando apresenta críticas. E quando se tornou evidente a patranha do Governo relativamente às pensões e quando do extraordinário aumento se passou a discutir a sustentabilidade da Segurança Social, por que razão não sustentou o PSD uma posição que contrarie a gerontocracia dominante? Porque não tem uma ideia do que pretende. Quem não reviraria os olhos a uma oposição deste calibre?

O estado da degradação política, institucional, social e económica parece ter chegado a uma situação de não retorno: boa parte do país vive confortável com as aldrabices do Governo, e a outra parte que não vive bem com elas está a desistir porque se começa a aperceber que não há de facto alternativa possível a isto.

A direita intelectual, sempre queixosa da hegemonia cultural da esquerda, tem hoje espaços públicos generosos que lhe permitem destruir narrativas e ajudar a construir uma cultura diferente que se revele, de alguma forma, nos comportamentos sociais, políticos e eleitorais dos portugueses. E permanece, com excepções aqui e ali, incapaz de formar uma frente de combate que seja construtiva e que derrote a esquerda no seu campo; pelo contrário, permanece, por um lado, semi-fechada sobre o seu próprio círculo e, por outro lado, meramente reactiva face aos avanços da esquerda. E a direita partidária revela-se a cada dia um campo minado de incapazes, gente com alguma habilidade para o jogo político interno dos seus partidos, que normalmente conhecem desde a infância, mas sem estrutura política efectiva: sem filosofia, sem pensamento, sem objectivos de Política e não de politiquice. Durante anos a direita cultivou frivolidade e tecnocracia, uma inutilidade agora que é preciso voltar a ter Política. O Partido Socialista, como bom farejador de poder, sente estas debilidades mesmo sem grande esforço. A manter-se o rumo das coisas, chegará o dia em que o PS nem precisa de construir narrativas. Pode perfeitamente matar um homem na Avenida da Liberdade que não será isso que o impedirá de obter maiorias. E a culpa não é dos socialistas.