Este Governo, aparafusado em 2015, relegitimado em 2019 e consagrado em 2022, é materialmente o mesmo Governo que: nomeou um procurador com falsidades no currículo, em detrimento da procuradora escolhida pelas instituições europeias; adjudicou golas anti-fumo inflamáveis num negócio que envolveu dirigentes do próprio partido do Governo; afastou a Procuradora Geral da República e o Presidente do Tribunal de Contas com base em critérios substantiva e formalmente discutíveis, embora politicamente claros; viu funcionários do SEF torturar e assassinar um cidadão estrangeiro no aeroporto, e acabou a nomear para a direcção-geral do SEF um membro do gabinete do próprio ministro da tutela; deixou roubar armas à instituição militar, dizendo o ministro, primeiro, que nem tinha havido roubo, e acabando a dizer que afinal o roubo até foi bom porque apareceram mais armas do que as que tinham sido roubadas; teve uma ministra que, quando era autarca, adjudicou 515 mil euros ao filho de um deputado do próprio partido, e essa mesma ministra adjudicou também 30 oliveiras por 60 mil euros, ainda quando era autarca, a sociedade gerida por familiares de um secretário de Estado; indicou para o Banco de Portugal o seu ministro das Finanças, que acabaria, naquelas funções, a fiscalizar os seus próprios actos enquanto ministro; tem sido composto por redes infindáveis de laços familiares, com nomeações feitas a maridos, filhos, primos e cunhados; a pretexto da pandemia, permitiu a criação de um «serviço nacional de covid» em detrimento de um «serviço nacional de saúde»; também a propósito da pandemia, limitou direitos, liberdades e garantias sem fundamento legal e constitucional; ainda quanto à pandemia, exigiu aos portugueses que se enfiassem em casa e cometessem suicídio económico e social para «dar tempo ao SNS de se reforçar», e afinal o SNS não está mais forte.

A lista é, de facto, grande: sete anos de condições financeiras e económicas internacionais vantajosas que nem assim foram utilizadas para tirar o país da lista dos mais pobres da Europa; uma incapacidade gritante de fazer face à inflação; a demonstração inequívoca de que, ao fim de quase uma década, os serviços públicos não funcionam melhor, a burocracia não foi reduzida, a corrupção não diminuiu, não somos capazes de atrair investimento, o sistema fiscal não foi simplificado, os salários não aumentaram, a pobreza, excluindo transferências sociais, não diminuiu de forma significativa.

É, enfim, «uma série de episódios que ensombram decisivamente a credibilidade do Governo e a sua capacidade para enfrentar a crise que o país vive, (…) sucessivos incidentes e declarações, contradições e descoordenações, que contribuíram para o desprestígio do Governo, dos seus membros e das instituições em geral». A citação é do discurso do presidente da República Jorge Sampaio, aquando da dissolução do Parlamento, em 2004.

Este episódio mais recente, do ministro Pedro Nuno Santos e do Primeiro-ministro António Costa, demonstrou, num só dia, o que têm sido sete anos de Governo: o PS a confundir-se com o Governo e com as questões de Estado, o poder usado como mero instrumento de satisfação de ambições pessoais e partidárias de manutenção de poder e não como forma de responder aos objectivos do país. O poder do PS é o princípio, o meio e o fim. Já não é, em bom rigor, um Governo, no sentido em que deve governar um país; é um clube de pantomineiros fechados sobre si próprios, a usar o Estado e a vida dos portugueses para deleite das suas fantasias e dos seus egos. Aparentemente o país aprecia o estado de coisas. Aliás, temo bem que as próximas sondagens voltem a revelar um PS próximo da maioria absoluta.

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A oposição, agora estabilizada depois do congresso do PSD, fará o que entender. Mas terá de compreender, se quiser ter algum sucesso num futuro que ainda se adivinha distante, que o país que tem pela frente é o que é, e se quiser que ele seja outro ou que, no mínimo, possa passar a querer desejar ser outro, tem um trabalho de formiguinha pela frente: nos locais de trabalho, nas associações, nas colectividades, na imprensa, nas televisões, nos bairros, por todo o lado há espaço para que se faça gerar uma nova predisposição que comece, por uma vez, a suspeitar do conservadorismo atávico e imobilista do Partido Socialista. E tem, em maior escala, de produzir rapidamente um programa, um conjunto de ideias simples de explicar e fáceis de entender, que demonstre inequivocamente que existe uma alternativa à pasmaceira instalada, capaz de oferecer ao comum dos portugueses uma série de coisas muito simples: mais dinheiro na carteira, mais perspectivas de vida melhor, melhores condições de vida em todas as regiões do país, melhores transportes, melhores cuidados de saúde, melhores escolas, alunos com professores, menos burocracia.

Nada disto se fará, porém, sem que seja evidente que a alternativa de poder à direita constitui, de facto, uma maioria estável, duradoura, de largo consenso, o que implicará um esforço de reunião das várias sensibilidades partidárias que, dentro do quadro do regime e da democracia, estão hoje saturadas daquilo em que se tornou o Partido Socialista nas últimas décadas. Esse é o único e grande consenso que é possível e desejável alcançar. Porque, como afirmava Paulo Rangel no passado fim-de-semana, a oposição ao PS, para ser boa, terá que ser feita por conflito e não por pactos de regime e benesses oferecidas ao desejo socialista de tornar a democracia portuguesa em algo meramente eleitoral e de vencedor único.

A bipolarização da sociedade portuguesa, como afirmava Sá Carneiro quando apresentou a Aliança Democrática, é um facto, está feita: «o importante é que se encontrem soluções políticas que, não querendo construir a bipolarização, mas extraindo da bipolarização realizada as suas consequências, evitem a radicalização e o afrontamento político e social da sociedade portuguesa». Estamos novamente na mesma encruzilhada. E, tal como em 1979, é tempo de PSD, IL, CDS e uma série de outros pequenos partidos que mencionei aqui há semanas, compreendam que podem e devem constituir essa ampla maioria consensualista de alternativa democrática, trazendo a polarização política para o centro. O PS teme que isso aconteça, como é sabido.

As mudanças que se impõem no país precisam de uma maioria interpartidária estável e com notória capacidade de inovação e de reforma e que, ao mesmo tempo, seja capaz de gerar um amplo consenso social e partidário, capaz de promover um renovado sistema político, um rejuvenescido sistema económico, em que o Estado de Direito seja uma realidade assegurada, em que a liberdade e a criatividade dos portugueses sejam postas à prova, que dê asas aos mais desprotegidos, ao invés de os manter na gaiola da miséria. E nesse projecto deve, naturalmente, entrar uma escolha presidencial compatível com o país que se pretende ter – mesmo que as presidenciais pareçam distantes, neste quadro que proponho é fundamental que elas comecem a ser preparadas com larga antecedência.

O PS já nada tem de novo a dar aos portugueses. Se Luís Montenegro falhar na sua oportunidade, provavelmente a última do PSD, talvez a democracia não resista. E se os socialistas, apesar de ainda terem quatro anos de mandato pela frente, estão já a precisar de um período fora do poder, o centro-direita tem tudo para não falhar. É a única coisa que se exige ao novo líder do PSD: não que leve o seu partido ao poder, mas que o faça por forma a que o país ganhe efectivamente algo com isso.