A reação de Mamadou Ba à decisão tomada por Manuel Luís Goucha de presidir à comissão de honra de Suzana Garcia, na candidatura à Câmara Municipal da Amadora, fez com que tivéssemos de recorrer diligentemente aos motores de busca para compreender o sentido da crítica formulada: “Isto vai para lá do sinistro homonacionalismo”.

O termo homonationalism foi cunhado por Jasbir K. Puar, Professora na Rutgers University, com a publicação, em 2007, de Terrorist Assemblages: Homonationalism in Queer Times. Partindo do feminismo transnacional, da teoria queer e do pensamento filosófico de Foucault, Deleuze e Derrida, a autora constrói um argumento complexo: 1) a incorporação das temáticas e reivindicações queer na política norte-americana efetuou uma normalização dessas identidades minoritárias e não-normativas, 2) transformando a imagem de morte tradicionalmente associada à comunidade gay (sobretudo pela questão da SIDA) em uma ideia de vida através da institucionalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo e dos seus direitos reprodutivos; 3) o problema é que esta normalização inclusiva foi feita com recurso a um processo discursivo de exclusão: a imagem de mortepassa a ser associada aos muçulmanos, apresentados como terroristas, numa progressiva construção de islamofobia.

A análise de Puar debruça-se sobre a realidade norte-americana de War on Terror, querendo atualizar a ideia de excecionalismo norte-americano – a tese de que os Estados Unidos ocupam um lugar especial entre as nações, cabendo-lhes a missão de liderar o mundo. Tratar-se-ia agora de excecionalismo sexual norte-americano, que legitimaria a intervenção libertadora por parte dos EUA com o facto de serem uma nação emancipadora para todos, inclusive os gays. O termo homonacionalismo pretende convocar esta complexa realidade em que se procede a uma normalização da identidade homossexual por forma a relacioná-la com os limites nacionais, promovendo com isso narrativas de exclusão e demonização de um outro Outro.

Um dos exemplos usados por Puar é Peter Tatchell, um dos fundadores do grupo político Outrage! que, na sua crítica ao Islão, promoveria a islamofobia. De acordo com o argumento de Puar, quando um homossexual critica o Islão pela sua homofobia está a colocar-se ao serviço dos ideais nacionalistas, isto é, a engrossar o movimento homonacionalista.

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Pensado a partir da Guerra ao Terror, o conceito tem ainda sido utilizado para analisar o conflito israelo-palestiniano como forma de promover o apoio a Israel e a condenação da Palestina. Mas acabou por se generalizar nas lutas culturais que marcam os nossos dias como arma de crítica aos homossexuais que, associando nacionalidade e reivindicações LGBT, justificariam posições racistas e xenófobas, especialmente contra muçulmanos. O exemplo francês pode ser usado para compreender a dinâmica subjacente: os estudos revelam que a comunidade LGBT tem demonstrado um apoio crescente ao partido de Marine Le Pen na última década. A razão? Receio perante o crescimento da comunidade muçulmana, que põe em causa uma vivência tranquila de acordo com os valores ocidentais (Submissão, de Michel Houellebecq, é fundamental para esta reflexão). Para Puar, tal é uma manifestação de homonacionalismo.

Como podemos enquadrar tudo isto no movimento mais amplo da esquerda radical? Para aqueles que subscrevem os princípios daquilo que Helen Pluckrose e James Lindsay chamam de pós-modernismo aplicado, a identidade individual dissolve-se na pertença a um determinado grupo para o qual remete a nossa identidade. É neste sentido que estes movimentos de esquerda radical são regularmente designados como movimentos identitários: acreditam que a nossa pertença a uma identidade determina o nosso posicionamento no esquema social mais amplo, regulado por dinâmicas de poder entre grupos privilegiados e grupos marginalizados. É o facto de pertencermos a determinado grupo que nos faz ter determinadas experiências pessoais, que são irrepetíveis por parte das pessoas que não partilham a mesma identidade. Mais ainda: essas experiências pessoais devem determinar a nossa visão da vida e as nossas obrigações políticas. Uma mulher consciente será sempre uma feminista ciente da sua condição de oprimida pela sociedade patriarcal em que vive e do seu dever de luta contra tal sociedade (caso não o faça, falaríamos em feminacionalismo, termo cunhado desta vez por Sara R. Farris).

Mas essas múltiplas condições identitárias (ser mulher, gay, negro, não-binário, etc.) são unidas num projeto comum: uma luta interseccional, que junta todos os marginalizados contra o grupo que detém a condição de privilégio (o homem, branco, heterossexual). O objetivo final desta luta interseccional é a criação de uma sociedade radicalmente diferente da nossa e que se libertaria dos padrões opressivos da cultura branca, patriarcal e heteronormativa – pelo que há uma recusa fundamental do atual modelo da sociedade ocidental.

Os comentários que querem limitar estes novos movimentos por justiça social a novas roupagens do marxismo esquecem um aspeto essencial: a importância atribuída aos aspetos económicos pela abordagem identitária é residual. Aquilo que mais determina a nossa condição são aquelas identidades e não o nosso posicionamento socioeconómico. Na verdade, os partidos políticos que ainda reivindicam a herança marxista colocam-se precisamente contra este tipo de movimentos por considerarem que os aspetos económicos são anteriores e mais relevantes do que a condição identitária.

Voltemos ao homonacionalismo. Qual é o problema, então, de homossexuais defenderem que os seus direitos e reivindicações nunca foram tão assegurados como nas sociedades ocidentais atuais? O problema é que estão a recusar o discurso oficial identitário de que as sociedades ocidentais são portadoras do mal absoluto e devem ser absolutamente recusadas. E por que razão não podem criticar os países não ocidentais onde os direitos LGBT não são assegurados e a condição queer é penalizada? Porque no jogo mais amplo das dinâmicas de poder, esses são países oprimidos e criticá-los significa pactuarmos com essa opressão.

É por não reconhecerem este tipo de obrigações identitárias que pessoas como Milo Yiannopoulos e Douglas Murray se tornam alvo de ataques frequentes – por não se comportarem de acordo com o prescrito para a sua identidade (homossexual) e por não subscreverem os discursos oficiais dos movimentos identitários. Quando um destes membros se recusa a fazê-lo, está a recusar a crítica e suspeita generalizada ao modelo da sociedade ocidental e a pactuar com os grupos opressores. Mas está também a recusar a sua verdadeira identidade (daí a acusação frequente de que não são verdadeiros homossexuais, mulheres verdadeiras, verdadeiros negros, etc.).

Um homossexual que se recuse a subscrever os princípios identitários desta esquerda radical e a entrar na lógica da interseccionalidade e transnacionalidade – apoiando, por exemplo, uma candidata que se posiciona contra aqueles princípios – está a colocar-se ao lado daqueles que defendem o nefasto nacionalismo. De acordo com Mamadou Ba, foi exatamente isto que Manuel Luís Goucha fez. Tornou-se, com isso, o inimigo a abater por ousar ter uma sinistra e inaceitável decisão individual.