1. Foi uma coincidência reveladora. Na segunda-feira, 10 de junho, o Presidente da República referiu-se ao interior nas cerimónias de Portalegre, apelando à necessidade “de acordar mais cedo e mais fundo para os Portugais demasiadas vezes esquecidos” e dizendo-se pronto para assumir “o valor de um compromisso acrescido para com estes portugueses e estas portuguesas que resistem à distância física e política”. Apenas 24 horas antes, nesse mesmíssimo Alentejo que agora se pode supostamente alegrar com um “compromisso acrescido” por parte do poder político — pelo menos, retórico — um bebé teve que nascer numa estação de serviço porque o hospital de Beja não tinha médicos para o parto. A caminho de Évora, os bombeiros, sem alternativa, pararam e fizeram tudo por si próprios. Felizmente, o parto correu bem e esta foi apenas mais uma história curiosa de bebés a nascerem em locais insólitos. Mas vamos, por um momento, imaginar que tinha existido uma complicação no parto. Sozinhos numa estação de serviço, algures entre Beja e Évora, que comentário ao discurso de Marcelo fariam estes bombeiros e esta mãe?

Este é um dos problemas do mandato de Marcelo Rebelo de Sousa: a distância, por vezes abissal, entre as palavras e os actos. Um Presidente da República não governa — e, obviamente, não decide que médicos vão para onde fazer o quê. Mas, mesmo não tendo um programa de Governo, um Presidente tem um programa político. Por isso é que é eleito e, mais do que isso, eleito de forma directa. Não herda o cargo, como a Rainha de Inglaterra; e não é nomeado, como os Presidentes de regimes onde o chefe do Estado é mais bibelô do que político. Ora, se Marcelo tornou a defesa do interior do país num dos pontos mais importantes do seu programa político, então os discursos precisam de se transformar em ação.

Só que há saltos que Marcelo, claramente, não pretende dar — pelo menos no primeiro mandato. O Presidente da República insiste, sempre que pode, nas extraordinárias qualidades dos portugueses. Neste 10 de junho, repetiu: “Quando somos muito bons somos dos melhores dos melhores”. Marcelo terá toda a razão. Mas é precisamente por ter toda a razão que é necessário esclarecer um enigma: se os portugueses são de facto “os melhores” individualmente, então porque é que, colectivamente, não conseguem o mesmo? Quais os impasses, os bloqueios e os erros que impedem Portugal de ser tão bom quanto os portugueses?

A resposta a esta pergunta será seguramente dolorosa. Sendo dolorosa, implicará escolhas. E, implicando escolhas, deixará muitos portugueses — e muitos eleitores — descontentes. Mas será a única forma de escaparmos à armadilha que ficou clara no discurso do Presidente da República a 10 de junho. E a armadilha é esta: depois de falar em “fracassos coletivos”, em “erros antigos ou novos”, em “corrupções” e em “falências da justiça”, Marcelo Rebelo de Sousa não teve sequer um sobressalto. Passou diretamente do grito para o murmúrio. Parece que nos está a dizer, como naquele velho filme que se transformou numa graça: “A situação é desesperada, mas não é grave”.

2. Ruben de Carvalho, que para nosso mal colectivo morreu esta segunda-feira, era um homem culto, inteligente, provocador, divertido, tolerante, curioso, generoso — e, atenção, livre. Não há muitos espíritos assim na política. Aliás, esqueçam a política, isso agora não interessa para nada: não há muitos espíritos assim na vida.

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