Em 13 de Agosto, na CNN, o general Carlos Branco desvalorizava, como é hábito, os avanços ucranianos, e dizia que é a hora da mesa de negociações. En passant sugeria que o Ocidente não tinha mais meios para ajudar a Ucrânia.

No mesmo dia, na mesma estação, o general Agostinho Costa falava da corrupção endémica na Ucrânia, do sistema “em colapso” e, sintetizando, tentava passar, como vem fazendo há quase dois anos, a mesma ideia de uma Ucrânia em fim de ciclo e condenada à derrota.

Por cá, o PCP lança sistemáticas campanhas pelo “Sim à paz”.

Nestes dias e semanas, esta ideia é também recorrente na propaganda russa virada ao Ocidente, e as declarações de uma plêiade de dirigentes, a começar no próprio Putin, apontam todas no mesmo sentido: a Ucrânia está a colapsar, a Rússia oferece a “paz” e o Ocidente está a atiçar o “conflito”, fornecendo material de guerra à Ucrânia.

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Que a propaganda resulta, mede-se pelo modo como toda uma horda, desde o Papa a Lula da Silva, passando por várias criaturas que quotidianamente nos assolam em certas televisões, repetem a mesma “sabedoria” panfletista.

O que se pretende com esta campanha?

Para perceber a lógica russa e dos seus propagandistas, é preciso ir um pouco atrás:

A implosão da URSS foi traumática para Putin, que, em Dresden, viu o seu mundo desabar, enquanto agente do KGB habituado, como muitos outros membros da nomenklatura russa, a pensar a URSS como potência de primeira grandeza, com um destino manifesto.

Nesses anos de desespero, várias nações e povos quebraram os laços com a Rússia, as instituições desmoronaram-se e as próprias Forças Armadas entraram num plano inclinado de desmoralização, corrupção, desinvestimento e degradação!

A sua falta de operacionalidade ficou à vista na desastrosa primeira guerra da Chechénia, que obrigou a Rússia a aceitar momentaneamente a derrota, só readquirindo o controlo do território na viragem do milénio, numa campanha sangrenta sem regras e sem limites.

Por essa altura no Iraque, em 1991 e 2003, forças tecnologicamente avançadas, lideradas pelos EUA, esmagaram em pouco tempo e com perdas negligíveis, enormes exércitos iraquianos, organizados segundo a doutrina soviética.

Os campos de batalha mostravam aos russos que algo de muito importante tinha mudado na arte da guerra e obrigaram as suas lideranças políticas e militares a uma dura introspecção.

Vladimir Putin tinha chegado ao poder, propondo-se restaurar a grandeza russa e ultrapassar/reverter os humilhantes resultados da desintegração da URSS. Afinar o instrumento militar era essencial para pôr ordem no interior, controlar os países limítrofes que tinham feito parte da URSS, olhar para o “Mundo Russo” e, quiçá, visar outros horizontes.

Que horizontes?

Na velha dicotomia entre Thalassocracias (potências marítimas) e Epirocracias (potências terrestres), Mackinder escreveu:

“– Quem dominar a Europa Oriental domina o Heartland;

– Quem dominar o Heartland domina a Ilha Mundo;

– Quem dominar a Ilha Mundo domina o Mundo.”

Alexander Dugin, mistura de Rasputin e Cardeal Richelieu, oriundo do ex-Partido Bolchevista, um dos homens que mais profundamente moldou o pensamento de Putin, é um estudioso da geopolítica, da qual tem uma visão assaz determinista. Para ele o território da Rússia, da URSS e do Império Russo é o “Heartland”, da Eurásia, o poder geopoliticamente dominante da “Ilha Mundo”, vasto território contínuo que engloba a Europa, a Ásia e a África. É claro que esta visão ignora as realidades da China e da Índia, mas isso são outras histórias.

Para Dugin, a Rússia tem o direito natural de procurar o controlo desse imenso espaço, e, sendo a óbvia adversária das potências marítimas, necessita das alavancas só ao alcance de um poder central e autoritário.

A parte etnonacionalista do pensamento de Dugin busca raízes nas ideias do obscuro filósofo fascista Ivan Ilyin, tão admirado por Putin, que ele mesmo tratou da trasladação dos seus restos mortais para Moscovo. O revelador artigo de Putin “On the Historical Unity of Russians and Ukrainians”, escrito em 2021, assenta nas ideias imperiais e geopolíticas de Dugin e Ilyin.

É esta cosmovisão de Putin o real motor desta guerra, não o “cerco” da Rússia, nem a “desnazificação”, nem a expansão da NATO, como pretende a propaganda do Kremlin, ecoada pelos seus admiradores e serventuários, como os generais do nosso Exército já aqui analisados.

Para além da geopolítica, muitos russos parecem sentir, por via da propaganda e do condicionamento cultural, não só uma forte hubris imperial, mas também um compromisso emocional com o “Mundo Russo”, vago espaço civilizacional definido pela geografia, língua, cultura, história, religião e etnicidade.

Há dias, Nicolay Vavilov, um conhecido propagandista russo, dizia, no show televisivo de Olga Skabeyeva (a “Boneca de Ferro de Putin”), que “Berlin, Dresden, Praga, Ljubljana, Paris, serão nossos”, “é assim que as coisas são”, “a Rússia é o maior país do mundo”.

Putin tinha pois uma visão, objectivos, poder, narrativa, mas não a ferramenta militar adequada.

Precisava também de uma estratégia.

Em termos teóricos, a que foi decantada é simples de entender:

Perante um caso concreto, subverter, preparar, amaciar e utilizar as forças convencionais para levar a cabo um ataque poderoso e súbito. Criar um facto consumado. Perante a ameaça de uma intervenção convencional, escalar para desescalar, e negociar a partir daí, em posição de força.

Nesta estratégia de escalar para desescalar, a aposta massiva nas munições nucleares tácticas tem uma lógica própria. Destinam-se a neutralizar as forças da NATO que poderão vir em reforço (concentrações de unidades, porta-aviões, etc.), sem atacar território americano, no pressuposto de que seria irracional para um presidente americano arriscar uma guerra termonuclear, como retaliação a um ataque nuclear limitado.

Isto porque, no Ocidente, as armas nucleares são vistas apenas como dissuasoras, ao passo que a Rússia as encara também como usáveis numa guerra limitada, quer seja efectivamente, quer para fazer a gesticulação ameaçadora que acompanha o lançamento do ataque convencional ou as suas posteriores fases.

Em Fevereiro de 2013, um ano e meio antes de os “pequenos homens verdes” terem ocupado a Crimeia, o general russo Valery Gerasimov, então CEME, publicou um artigo no “Military Industrial Courier” que resume o que se convencionou chamar a “doutrina Gerasimov”, admirada por alguns generais russófilos do nosso exército e que, grosso modo, antecipou os movimentos da Rússia na Ucrânia, em 2014 e 2021.

Não sendo uma verdadeira doutrina, e descrevendo o modo como o EM russo interpretou os métodos ocidentais de fazer a guerra, é, todavia, o nosso melhor insight para o actual pensamento militar russo.

Para Gerasimov, as revoluções coloridas na Europa, a Primavera Árabe e as operações militares no Iraque, Afeganistão, Líbia e Síria ilustraram uma nova forma de alcançar objectivos político-militares, que passa essencialmente pelo uso de meios não militares e métodos indirectos, prévios ao conflito. Este não é declarado, começa simplesmente com forças já desenvolvidas, eventualmente em exercícios, combinando medidas não militares e militares, para subjugar o adversário antes de combater ou, se o combate se tornar inevitável, assegurar rapidamente os objetivos e depois desescalar enquanto se negoceia.

Esta ênfase no pre-conflict shaping, a necessidade de permanecer “invisível” o mais tempo possível, a rápida captura dos objectivos uma vez revelada a força, e depois a rápida desescalada e negociação a partir de uma posição de força, é o novo modus faciendi russo, testado em jogos de guerra, nos sucessivos exercícios Zapad, e em 2008 na invasão da Geórgia.

O combate em si mesmo já não se resume à destruição de pessoal e material, captura de posições inimigas e território, etc., mas procura essencialmente a rápida destruição de infraestruturas críticas civis e militares, de forma a reduzir o potencial militar e económico do inimigo.

As operações decorrem simultaneamente em todos os ambientes, físico, virtual, informacional, etc., para levar o inimigo a acreditar que não tem qualquer hipótese de prevalecer.

Isto, já há muito a ser feito pelos americanos, era, do ponto de vista de Gerasimov, o caminho que a Rússia teria de seguir para alcançar os seus objectivos.

A grande diferença é que, enquanto o Ocidente encara o uso de medidas não militares como uma forma de evitar a guerra, a Rússia considera-as doravante como uma parte da guerra.

Esta estratégia, gerida com maestria e intencionalidade por Putin, conferiu à Rússia, apesar de não ter as melhores cartas, a possibilidade de retornar, nos últimos anos, a uma certa proeminência nas relações de poder.

Quando e se as coisas não se resolvem rapidamente, como está a acontecer na Ucrânia, a Rússia pretende, no mínimo, congelar o conflito (“sim à paz”), situação que lhe permitiria normalizar factos consumados e ganhar tempo, prolongando a confrontação em vez de a tentar ganhar. Esta “paz” passa normalmente por um cessar-fogo sem condições e infindáveis negociações. Foi o que aconteceu na Geórgia e na primeira invasão da Ucrânia. É também o que está a tentar fazer agora.

Quanto à Ucrânia, no fim de 2021, tudo estava pronto:

A gesticulação nuclear para dissuadir qualquer intervenção convencional da NATO, um núcleo renovado de forças convencionais já desenvolvidas nas fronteiras da Ucrânia, em “exercícios” (Zapad 21), extensivo uso de hackers, relações com crime organizado, manipulação da imigração, propaganda, manipulação mediática, alianças com “idiotas úteis”, controlo de líderes partidários e comentadores ocidentais, redes de informação, assassínios, sabotagens, mentiras deliberadas, versões imaginativas dos factos, falta de compromisso com a realidade objectiva, mensagens inconsistentes, enfim, o menu completo da “guerra híbrida”.

A amalgamar tudo isto, a capacidade de cavalgar o fio da navalha, permanecendo no limiar do horizonte de detectabilidade, e na zona de negação plausível, de modo a inibir qualquer preparação ou acção militar preventiva.

Quando o ataque russo começou, precedido de recorrentes negações de que tal ia acontecer, a ideia era obter a claudicação rápida do governo ucraniano, a instalação de um poder fantoche em Kiev e a expedita anexação de territórios que lhe interessavam.

No papel parecia plausível, mas Putin sobrestimou a sua mão e subestimou o adversário.

A operação não foi rápida, a Rússia deixou-se atolar numa guerra de dimensões inesperadas, mas continua a tentar fazer, mesmo neste cenário de pesadelo, aquilo que a sua estratégia determina: consolidar os factos consumados (o terreno ucraniano que ocupa), congelar o conflito (é por isso que as suas antenas no Ocidente, como o PCP ou os generais pró-russos, pedem a “paz” e a “mesa das negociações”) e negociar a partir dessa situação vantajosa.

A verdade é que, se a Rússia conseguir estes objectivos, a sua estratégia permanecerá intocável e vencedora, e é inevitável que volte a utilizá-la na consecução da grandiosa visão geopolítica de Putin, o que seria desastroso para o espaço civilizacional a que pertencemos.

Se a estratégia falhar, a Rússia terá de retrair, ver-se-á cada vez mais confinada ao seu espaço de soberania, com menos influência cultural, sem dimensão demográfica para escapar ao vórtice gravitacional da perda de poder, rodeada por espaços tecnologicamente mais desenvolvidos, mais populosos e mais poderosos.

Uma vez perdida, por eventual transição energética, a caixa registadora que garante dólares e euros, a Rússia, ou muda por dentro, ou tenderá a ser um gigantesco estado pária, de quem todos desconfiam, à imagem da Coreia do Norte, protegido por detrás das suas armas nucleares e fazendo, de vez em quando, notar a sua existência, pela mero lançamento de mísseis, ou anúncio de uma nova arma invencível.

Como é evidente, é do nosso máximo interesse que a estratégia russa falhe e, para que isso aconteça, há que jogar a cartada mais lógica: apetrechar atempadamente a Ucrânia com o que necessita para expulsar a Rússia dos territórios que ocupa. Só isso refutará a sua estratégia, só isso a fará desistir dos seus sonhos imperiais, só isso manterá a Ucrânia e os seus vastos recursos fora do alcance da nomenklatura russa e, por conseguinte, só isso assegurará a paz na Europa!

Neste momento, o que se passa na Ucrânia, mais do que uma guerra de atricção, é uma luta de vontades.

O problema é que Putin ainda acredita que a dele é mais forte que a dos ucranianos ou a do Ocidente.