Há já mais de duas décadas, todos os anos o ex-ministro das Finanças Ernâni Lopes, que morreu em 2010, fazia um encontro com jornalistas. Nunca dava notícias, mas oferecia muitos motivos de reflexão. Num desses encontros, talvez a propósito das tendências liberalizadoras a que assistíamos, falou-nos no efeito pêndulo. Trajetórias em excesso num sentido, conduzem depois a efeitos em sentido contrário. Para simplificar, o liberalismo iria a dar lugar a intervencionismo.
A memória abriu-se para este distante encontro com Ernâni Lopes na sequência das propostas que a nova administração norte-americana está a fazer, de recuperação da economia e do seu financiamento, e das posições que estão a ser assumidas pelo FMI, nomeadamente em matéria de impostos.
Os EUA avançaram com o “The made in America tax Plan” que transcende o objectivo de financiar o plano de investimentos em infraestruturas de Joe Biden. Com seis princípios, entre as medidas previstas está o aumento da taxa de imposto sobre os lucros das empresas de 21% para 28% assim como uma taxa mínima de 15% sobre os resultados contabilísticos de empresas que declaram elevados lucros, mas têm um resultado tributável baixo.
Integrado nesse plano, está a intenção de chegar a um acordo global de tributação, no âmbito das negociações que estão a decorrer na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE). De acordo com o Financial Times, a administração Biden colocou em cima da mesa uma proposta, que enviou a 135 países, e que aborda os dois pilares da negociação: a definição de uma taxa de imposto mínima global sobre os lucros das empresas de 21% e a criação de uma taxa sobre as vendas em cada território nacional de empresas que são fundamentalmente tecnológicas e que conseguem fugir aos impostos – uma batalha antiga entre os EUA e, por exemplo, a União Europeia, e que tem levado à opção de múltiplas taxas. (Inês Domingues fala igualmente do tema aqui no Observador)
Podemos estar perante um avanço histórico em matéria de governação global da tributação, com o objectivo de combater o planeamento fiscal agressivo das empresas, por um lado, e a estratégia de “roubar o vizinho”, que alguns países têm seguido, para atraírem receita fiscal à custa dos seus parceiros. Não será fácil, nomeadamente a taxa mínima global. Países como a Irlanda, a Holanda e o Luxemburgo têm vivido à custa desta falta de entendimento global e serão dos grandes afectados por esta medida de imposto mínimo.
As iniciativas de Biden estão a merecer o aplauso de economistas como Paul Krugman que no New York Times dá o exemplo da Irlanda para mostrar como a estratégia de reduzir impostos se tem revelado um fracasso enquanto meio para atrair empresas que geram emprego. E Joe Biden tem sido bastante assertivo, no sentido de defender o aumento de impostos. A falar do seu plano de infraestruturas, reporta o Político, disse: “Estou farto e cansado de ver pessoas comuns a serem espoliadas”.
A mudança de abordagem fez-se igualmente sentir no FMI que, no seu Fiscal Monitor vem defender o aumento de impostos e até a criação de um imposto temporário a recair sobre os negócios que lucraram como a crise, como por exemplo as farmacêuticas ou algumas tecnológicas.
Em Portugal o tema do aumento de impostos a incidir sobre os que ganharam, ou não perderam, com a pandemia foi lançado pela economista Susana Peralta numa entrevista ao Jornal I. O debate centrou-se muito na expressão que usou “burguesia do teletrabalho”, mas o espírito da proposta parece ir ao encontro do que agora é proposto pelo FMI.
A necessidade de avançar com medidas muito significativas para recuperar a economia e, ao mesmo tempo, combater o agravamento das desigualdades justificam no fundamental as propostas feitas pela área das políticas orçamentais do FMI – dirigida pelo ex-ministro das Finanças Vítor Gaspar.
O FMI trata aliás de forma relativamente desenvolvida o problema do agravamento das desigualdades que a pandemia expôs e ainda aumentou mais. E os dados que divulga são reveladores, nomeadamente na concentração da riqueza. No caso de Portugal, o Fiscal Monitor, que tem o título elucidativo “Fair Shot”, revela que 52% da riqueza está concentrada em 10% da população (ver página 29). A desigualdade é aliás mais grave quando se olha para os dados da riqueza em vários países. E Portugal é igualmente um dos países que viu a desigualdade agravar-se entre 1990 e 2019 (ver os dados relativo ao gráfico da página 26).
A pandemia pode ter sido o gatilho para o pendulo se movimentar, com a iniciativa de países que têm o poder de fazer mudar as regras, como os Estados Unidos. Os excessos a que se assistiram desde a última década do século XX acabaram por não ser corrigidos, como se esperou, na crise financeira. Os cínicos dirão que a classe política só se move por medo e o medo chama-se movimentos populistas, discursos que vão ao coração das pessoas que, como Biden disse, estão fartas de serem espoliadas.
Em Portugal só é preciso ter cuidado para não serem espoliados os mesmos do costume, salvando-se os mesmos do costume. Mas que será necessário falar menos e ter de facto políticas redistributivas mais eficazes na educação, na saúde e no rendimento, isso parece ser urgente. Porque no caso português, nos últimos anos, o discurso do combate aos excessos do liberalismo não passou disso, de palavras, enquanto fomos vendo degradar-se a educação e a saúde.
É também fundamental que os excessos passados não passem para excesso em sentido contrário. Se Ernâni Lopes tiver razão, é de facto isso que vai acontecer: os excessos do liberalismo darão lugar aos excessos de intervencionismo.