Já sabemos que há governantes que gostam de exercer o seu poder para além do que seria estritamente necessário para o desempenho das suas funções, nomeadamente incomodando os cidadãos com interrupções de trânsito, reserva de espaços públicos para eventos por si organizados, alterações de horários de transportes e restrições pontuais à liberdade de circulação ou prioridades sobre os cidadãos, entre outros incómodos que se deveriam coibir de motivar, exercendo os seus mandatos sem espalhafato e com a discrição recomendável. Um dos exemplos históricos mais extremos desta mania das grandezas remonta à monarquia absoluta, em que a rainha Carlota Joaquina, mulher de D. João VI, exigia que todas as pessoas, à passagem da comitiva real, saíssem das suas carruagens ou desmontassem dos seus cavalos, para saudar a rainha de chapéu na mão. A soberba ou arrogância dos grandes ou pequenos poderes diluíram-se ao longo do tempo – até pelo ridículo – mas, ainda assim, mesmo depois da instauração do Estado democrático, se já não se podem exercer de forma tão pouco subtil, não deixam de se manifestar, embora de modo menos descarado, em atitudes discricionárias ou abusivas de políticos e agentes administrativos.
Já em anterior escrito aqui no Observador, dei conta de ter estado, com mais algumas centenas de passageiros portugueses, duas horas enfiado num avião também português em S. Tomé e Príncipe, a aguardar que o Presidente deste país embarcasse, pois teria de vir a Lisboa em trânsito para Nova Iorque, coisa que soubemos informalmente, pois oficialmente não foi dada nenhuma explicação.
Como também nunca era dada alguma explicação para sucessivos atrasos na descolagem de aviões da TAP no Porto ou no Funchal com destino a Lisboa, só porque aguardavam que embarcasse algum membro do governo. Isto só era perceptível para quem compartilhasse a classe executiva com o relapso, pois a maioria dos passageiros, devidamente separados pela cortina, não se apercebiam que todos os problemas que motivavam o atraso se resumiam afinal à chegada tardia do dito governante, momento após o qual, imediatamente se acendia o sinal de apertar o cinto e recolher as mesas.
A recente tentativa de antecipação de um voo do Maputo para Lisboa, onde deveria viajar o Presidente da República, já amplamente noticiado e comentado, inscreve-se no mesmo tipo de atitude de membros do poder político face aos cidadãos, seja este comportamento ordenado pelos próprios ou por algum zeloso assessor ou secretário, o que não é em caso algum desculpatório para os dirigentes, sempre que se conformarem com o resultado dos abusos dos seus colaboradores.
As justificações por escrito do secretário de Estado das Infraestruturas, no sentido de antecipar o voo, revelam duas coisas que não são antagónicas, mas antes se complementam. A saber: o secretário de estado comporta-se como um garoto; o secretário de estado entende que é aceitável alterar a vida e os direitos de 200 passageiros, em função do que ele entende ser o interesse ou conveniência do governo.
Na altura em que este assunto se tornou público, já o secretário de estado se havia demitido bem como o seu ministro – que aliás, em matéria de imaturidade, não pede meças a este seu ajudante – mas a demissão destes governantes não deve ser razão suficiente para se considerar que o “incidente” se encontra completamente esclarecido.
De facto, está comprovado, porque existem documentos, que o secretário de estado entendeu que o voo deveria ser antecipado e que só perante as dúvidas da CEO da TAP junto da agência de viagens, foi decidido no fim de contas, manter o voo tal como estava programado.
Mas há algo que torna a explicação incompleta. Se o pedido de antecipação do voo, foi feito pela agência de viagens – presumindo que é aquela que trata das viagens do Presidente – então quem inicialmente pediu à dita agência de viagens que antecipasse o voo? Não terá sido certamente uma iniciativa da funcionária da agência… Então foi de quem? Isso continuamos sem saber.
Poderá dizer-se que tudo isto é um fait diver ou um casinho. Discordamos. Não é. Este caso é uma evidenciação de práticas políticas e administrativas que permitirão que cada cidadão tire as suas conclusões sobre o carácter de dirigentes políticos, e isso não é irrelevante na hora de votar.
Em matéria de abusos de poder, nesta aparente “minudência” que é sujeitar os cidadãos aos caprichos ou necessidades dos governantes, já citámos a rainha Carlota Joaquina, mulher de D. João VI, que seria seguramente um bom exemplo de alguém que não se inibiria de deixar 200 portugueses em terra, se fosse do seu interesse embarcar mais cedo em algum navio.
Pelo menos na lei, com a revolução de 1820 deixou de existir a condição de portugueses de primeira e de segunda, mas parece que dois séculos depois, ainda é relevante sabermos, se os dirigentes políticos eleitos num Estado de Direito no século XXI se comportam afinal como se ainda estivéssemos no tempo da D. Carlota Joaquina.