1 Ponto prévio. Não defendo, nem defenderei, a proibição ou limitação da liberdade de expressão seja de quem for ou a ilegalização de qualquer partido político ou organização similar. A liberdade de expressão em democracia comporta não só as ideias ridículas e absurdas, como também as ideias que visam destruir o nosso modo de vida — e impor-nos, pensam eles, uma sociedade que será tão perfeita, tão perfeita que só por absurdo nós, os incultos e ignorantes, não a aceitamos.

A superioridade moral das democracias, que está mais do que provada historicamente, obriga a conviver com as forças políticas que defendem a ditadura e a opressão. A democracia, para ser democracia, obriga-nos a dar aos comunistas e aos neo-comunistas aquilo que eles nunca nos dariam se estivessem no poder: liberdade para exprimirem o seu ponto de vista sem serem perseguidos pelas suas ideias.

Preferia que não fosse assim (porque isso significaria que não teríamos uma guerra no coração da Europa) mas a invasão da Ucrânia voltou a recordar o óbvio pelas posições que o PCP assumiu e o Bloco escondeu.

2 No seu “O Homem que Gostava de Cães” (Porto Editora, 2011), o cubano Leonardo Padura descreve com um enorme talento literário como Ramón Mercader, o assassino de Trotsky, foi reeducado num campo de trabalho. Teve de apagar a sua história (o seu pai, a sua mãe, os seus irmãos, o seu grande amor e as suas recordações na Guerra Civil de Espanha), teve de perder a sua alma para ser um verdadeiro comunista. Só assim seria capaz de executar a operação que o camarada Estaline tinha decidido oferecer-lhe.

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O totalitarismo caracteriza-se precisamente por esse processo de ‘desumanização’ imposto pela necessidade de se construir um homem novo. E, por isso mesmo, as consequências do comunismo não foram diferentes das do nazismo. Se Hitler promoveu e concretizou o genocídio dos judeus e perseguiu os homossexuais, ciganos e todos os opositores do nazismo, Estaline e todos os seus sucessores promoveram a destruição de todos os que não eram comunistas (perseguindo igualmente judeus, ciganos e homossexuais, entre outros).

A contabilidade das vítimas do nazismo e do comunismo na Europa é algo impossível de quantificar com precisão mas a cifra final coloca-se sempre nos milhões de mortos nos campos de concentração dos dois totalitarismos.

Concentrando-me apenas no comunismo. Os crimes de Estaline e dos seus sucessores ficaram impugnes durante muitos anos. Porquê? Porque os comunistas sempre se caracterizaram pelo relativismo moral. A busca de uma sociedade perfeita, como aquela que o marximo promete (mas que nunca ninguém conseguiu concretizar), sempre foi uma justificação plausível para todo e qualquer crime.

3 No caso português, o relativismo moral do PCP — um partido que apenas teve alguma influência em termos de governo durante o PREC — sempre foi outro.

Em primeiro lugar, um seguidismo religioso da União Soviética que resistiu à própria morte daquele regime comunista e que se vê na educação dos diferentes comunistas educados pelo PCP. Ou o Gulag é puramente simplesmente ignorado (como aconteceu num famoso episódio protagonizado por Rita Rato, hoje diretora do Museu do Aljube) ou a União Soviética é transformada numa “convivência pacífica” entre os diferentes povos que a constituíam (como afirmou em entrevista ao Observador a nova líder parlamentar Paula Santos) ou então a ditadura, a fome e os milhões de foram perseguidos são apenas “erros” e “desvios”.

Sem ir muito longe, Paula Santos devia perguntar aos ucranianos o que eles pensam sobre essa “convivência pacífica” que gerou a Grande Fome dos anos 30. Ou questionar os lituanos, letões e estónios, georgianos e tantos outros povos sobre a forma pacífica como o Exército Vermelho e as sucessivas polícias políticas lidaram com os seus pais e avós.

Além da pura ignorância (que obriga ao uso de palas para olhar sempre em frente), aos comunistas tudo é perdoado em Portugal. A sua luta contra a Ditadura salazarista (que existiu) e a sua retirada em tempo útil do golpe de Estado de 25 novembro (algo que nunca foi perdoado pela extrema-esquerda militar de 74/75) é uma espécie de salvo conduto para todos os disparates.

Ao PCP são permitidas todas as excentricidades, como apoiar as piores ditaduras do mundo ao longo do tempo, porque o país (dizem) tem uma dívida para com os comunistas. Quem me lê, sabe que discordo veementemente disso. Pela minha parte, nada tenho a agradecer aos comunistas porque sei perfeitamente o que fariam se alguma vez chegassem ao poder.

4 Ao longo da minha carreira profissional, tenho-me cruzado com diversos jornalistas que se assumem como militantes do PCP — uma espécie de luxo deontológico que permitiu, por exemplo, que durante muitos anos o líder do sindicato dos jornalistas fosse candidato de quatro em quatro anos nas listas da CDU. Um luxo que deixou de existir a partir do momento em que o conselho deontológico passou a ser liderado por jornalistas que constaram o óbvio: a atividade política é incompatível com o exercício do jornalismo.

Um desses jornalistas comunistas com quem me cruzei chama-se Pedro Tadeu — um homem inteligente e com um sentido de humor refinado. Como não podia deixar de ser (e como tem direito), Tadeu defendeu o seu partido no último artigo do DN, falando do “demónio do ódio em ação” que alegadamente teria como objetivo ilegalizar o PCP — uma dramatização política oca e falsa.

Mais extraordinário é o último argumento quando Tadeu pergunta: “se, hipoteticamente, as tropas do senhor Putin um dia invadissem Portugal, quem de entre estes acusadores do PCP estaria disposto a organizar-se para resistir ao invasor?… E quantos militantes do Partido Comunista Português o fariam? (…) não tenho dúvidas que, nessa hipotética e derradeira contabilidade do patriotismo, o PCP ganharia a grande parte dos seus críticos atuais. Mesmo na ilegalidade.”

É uma espécie de último argumento que faltava (e atesta bem a alegada mas inexistente superioridade moral dos comunistas portugueses). É que além de estarem sempre certos, de professarem a ideologia que promete a felicidade eterna (que ninguém ainda viu) e nunca terem defendido a invasão russa da Ucrânia, os comunistas portugueses são mais corajosos do que os seus restantes compatriotas. É uma forma engraçada de chamar cobardes a todos os portugueses que não são comunistas.

Pena os comunistas portugueses não terem demonstrado coragem alguma enquanto viveram nos países do leste europeu durante a Cortina de Ferro. Álvaro Cunhal e os seus camaradas mais próximos foram perseguidos em Portugal por uma Ditadura que os via como inimigos — totalmente verdade.

Mas foram exilar-se em países onde checos, húngaros, polacos, romenos, búlgaros, ucranianos e russos, entre tantos outros, eram brutalmente perseguidos, onde existiam políticas políticas muito mais impiedosas do que a PIDE (e não estou aqui a desculpar os crimes da PIDE, obviamente). Quantos cidadãos daqueles países morreram nas prisões comunistas enquanto que Cunhal e outros dirigentes do PCP (e respetivas famílias) viviam naqueles países financiados pela URSS? O que disseram os comunistas portugueses sobre isso? Ficaram surdos e mudos.

Coragem? Coragem teria sido abrir os olhos e perceber os crimes contra a humanidade que o comunismo imperialista soviético praticou. Coragem? Coragem teria sido não apoiar, como o PCP apoiou, a invasão da Hungria em 1956 na qual morreram mais de 20 mil húngaros ou a repetição da mesma invasão em 1968 em Praga para cortar pela raiz o reformismo de Dubcek.

5 Na célebre entrevista em que manifestava desconhecimento do que tinha sido o Gulag, Rita Rato também não quis pronunciar-se sobre a ditadura chinesa. Porquê? “Não tenho que concordar nem discordar, não sou chinesa”. Ora, aí está! Com menos frontalidade, é assim que os comunistas portugueses costumam responder sobre a China e outras ditaduras comunistas.

O PCP é um partido patriota, só se interessa pelos portugueses. Se os chineses vivem numa ditadura, se não têm direito às garantias mínimas de qualquer Estado de Direito, o que interessa isso? Nada! Como antes também não interessava o destino dos checos, húngaros, polacos, romenos, búlgaros, ucranianos e russos e de tantos outros. O que para um partido que diz que também é internacionalista é um pouco estranho.

Coragem? Lamento mas o PCP nunca mostrou coragem alguma pela União Soviética. Só puro seguidismo — mesmo quando milhares morriam à sua volta. Até ao último dia, o PCP comportou-se de forma fielmente canina. E, como não podia deixar, não faltou com o seu apoio ao golpe de Estado de 1991 de uma fação do decrépito PCUS que tentou depor Gorbachev para manter União Soviética mas apenas acelerou a sua queda.

6 O PCP é hoje um partido excêntrico por natureza — e não, não estou a defender a sua extinção; só se for por morte natural nas urnas eleitorais. Essa excentricidade, que é aceite pela comunidade em geral, dá-lhes até o direito de terem um vocabulário, uma gramática e um dicionário próprio — que só eles, seres supremos da inteligência humana, conseguem decifrar.

Isso viu-se, uma vez mais, na questão da invasão da Ucrânia. Lamento mas uma “intervenção militar” não é a mesma coisa que “invasão”. A Rússia intervir militarmente num determinado conflito não é a mesma coisa que invadir um Estado soberano, com fronteiras internacionalmente reconhecidas (inclusive pelos próprio Putin) para derrubar um Governo legitimo e democraticamente eleito.

O mesmo se diga da ideia de que a Rússia de Putin e os Estados Unidos estão no mesmo patamar, como se tivessem sido os Estado Unidos e a NATO a invadirem a Ucrânia

E essa excentricidade também resulta da benevolência de muitos pensarem que os comunistas portugueses são diferentes dos outros. Não são. São exatamente iguais.

Parafraseando Pedro Tadeu, são igualmente “corajosos” como os comunistas soviéticos, chineses, cubanos, norte-coreanos e tantos outros que ao longo das respetivas histórias nacionais criaram tiranias que perseguiram e empobreceram as respetivas populações. Se lhes fosse dada uma oportunidade em Portugal, teriam feito a mesma coisa. E este artigo não teria sido publicado.

Corrigida gralha relativa ao nome do escritor cubano Leonardo Padura