Cada um, de vez em quando, vê-se apanhado por uma questão à qual volta repetidamente. Comigo, de há uns tempos para cá, é a do ridículo em política. Sublinho: em política. Na longa lista dos ridículos possíveis, a maioria pertence à categoria geral do indiferente. E há até alguns que podem ascender ao estatuto do admirável, como no caso do amor, em que o medo do ridículo se arrisca muitas vezes a condenar os indivíduos à infelicidade eterna. Mas em política o ridículo possui uma natureza própria, que em certos momentos se confunde com a do ameaçador.
Nada como um exemplo. A Assembleia Constituinte venezuelana aprovou no outro dia uma Lei Constitucional Contra o Ódio. Já o nome é todo um programa. Não que a legislação sobre as paixões seja propriamente uma invenção do regime do camarada Maduro. Num certo sentido, toda a legislação visa sempre condicionar o exercício das paixões ou encaminhá-lo numa certa direcção. Platão explicou-o na República e a lição não foi esquecida pela filosofia. O problema não está, é claro, aí. O problema começa com a ideia de que as paixões podem ser abolidas por decreto. E continua com a escolha da paixão a abolir. O ódio, como se sabe, opõe-se ao amor. A Assembleia Constituinte venezuelana vê-se como a fiel depositária desta última e nobre paixão e como um corpo particularmente habilitado para detectar e punir tudo o que se lhe oponha. Em vez de “ódio” podia, é claro, lá estar “mal”. Não há grande diferença entre uma coisa e outra. Em qualquer dos casos, estamos num plano mítico. O Bem contra o Mal, o Amor contra o Ódio. E as regras mandam que o primeiro elemento de cada par destrua, no fim dos tempos, o segundo. A Venezuela vai por óptimos caminhos.
Tanto mais que a Lei Constitucional contra o Ódio se apresenta também como uma lei contra o particular flagelo da intolerância. “A Venezuela põe hoje esta lei à disposição do mundo. Não exportamos somente petróleo, queremos exportar paz, amor e tolerância num mundo gravemente ameaçado pelos poderes imperiais”, proclamou Delcy Rodríguez, a presidente da Assembleia Constituinte. A exportação do Bem sob as suas várias formas promete. O problema fica no interior da Venezuela. Porque os fautores do ódio e apóstolos da intolerância se encontram perfeitamente designados pela Assembleia Constituinte. Com efeito, a lei esclarece que serão doravante ilegais os partidos e os meios de comunicação social que não jurem muito depressinha pelo amor e pela tolerância e que promovam os seus contrários. E, atenção, a intolerância paga-se caro: vinte anos de prisão. Sem tanta magnífica tolerância, presume-se que seriam mais.
Esta fantochada pode certamente fazer rir. O ridículo indiscutível da fantasia cósmica de uma luta imemorial entre o amor e o ódio terminada por decreto revolucionário com a vitória do primeiro não convida certamente a reflexões sérias. Mas, se tivermos em atenção os seus antecedentes históricos, o riso devia gelar-nos. Não só porque tudo obedece a um padrão bem estabelecido que sempre presidiu às tentativas de criar um “homem novo”: o da excisão das “más paixões” do coração dos humanos, como, por exemplo, a paixão pela propriedade privada. Toda a gente conhece os exércitos de cadáveres que resultaram do exercício, ainda por cima condenado ao fracasso. Mas também por outra razão, que se prende com a natureza própria do ridículo: a contradição ostensiva que a Lei Constitucional contra o Ódio exibe quando se refere à tolerância. A intolerância não será tolerada. Não se trata apenas aqui do velho “paradoxo da tolerância”, tema importante da filosofia política sobre o qual Diogo Pires Aurélio escreveu há já vários anos, um excelente pequeno livro (Um fio de nada. Ensaio sobre a tolerância): pode a tolerância tolerar os seus inimigos?, como estabelecer os limites no capítulo? Não: aqui há mesmo contradição. A tolerância é definida a partir do ponto de vista de uma intolerância que pretende nominalmente eliminar. E funciona como um nome sem substância real, produzido por uma máquina de palavras. O ridículo é indiferente para quem funciona como uma máquina de palavras.
E chegamos aqui ao que me interessa e que extravasa largamente o caso dos bravos deputados venezuelanos. Tão largamente que este assunto poderia, sem dificuldade, tornar-se objecto de uma coluna semanal: exemplos não faltariam. O riso face à contradição patente devia assinalar-nos o perigo. Nestas matérias, a indiferença face ao ridículo não é apenas sinal da falta daquele pudor que, para Platão, era uma virtude política eminente. É, mais afirmativamente, a declaração de um fechamento sobre si que representa a recusa explícita de nos colocarmos no lugar dos outros. Certas formas de ridículo político exibem na perfeição essa recusa. O caminho para o grotesco e, de seguida, para o horror, encontra-se já traçado. Tudo é possível para quem decidiu não se pôr mais no lugar do outro.
Há uma extensa literatura que lida com a questão da mentira em política. Ela deveria ser acompanhada por uma reflexão sobre o papel do ridículo. Em muitos casos, é de admitir, ele pode ser insignificante. Os mecanismos democráticos servem perfeitamente, em princípio, para o conter e para manter algum do tal pudor de que Platão falava e que é indispensável para a decência das sociedades. Mas nada é infalível. Não é preciso lembrar o exemplo de Hitler: quanta gente não o levou, durante um tempo tragicamente excessivo, a sério? Não é preciso nem talvez seja conveniente. Há um excesso em Hitler que o torna quase incompatível com a descrição da nossa experiência política mais comum, por muito que esta se incline nas piores direcções.
Mas há exemplos menores que nos convêm melhor. E há sobretudo uma espécie de escala à qual não nos faria mal estarmos atentos. Quando o ridículo se repete e se torna por assim dizer um hábito tolerado, de uma coisa podemos estar certos: o sentimento de impunidade aumenta. E com o sentimento de impunidade vem inescapavelmente o arbitrário e o seu costumeiro cortejo de horrores. O que, num primeiro momento, pode perfeitamente ser insignificante, arrisca-se a, pouco a pouco, contribuir para a destruição da nossa vida comum. Kant, seguindo o filósofo inglês Shaftesbury, dizia que o riso provocado é a pedra de toque da má filosofia. A frase (que se pode, é claro, discutir) pode talvez ser transportada para o plano político. O ridículo é, à sua maneira,uma pedra de toque da má política. Rir faz sentido, certamente, mas na condição de estarmos conscientes de que o pior pode vir aí.