O recente acórdão do Tribunal Constitucional sobre a lei da eutanásia considerou que o direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias, admitindo a constitucionalidade da eutanásia em determinadas situações. Para além de lamentar esta declaração, não me parece lógico contrapor o valor da vida humana ao valor da liberdade e da autonomia. A autonomia supõe a vida e só é livre quem vive.

Das duas normas que suscitaram dúvidas de constitucionalidade ao Presidente da República, o caráter excessivamente indeterminado do conceito de “sofrimento intolerável” e do conceito de “lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico”, o TC declarou apenas como inconstitucional esta última. Apesar do entusiasmo manifestado por alguns partidos para corrigir a lei, considero praticamente impossível a missão da Assembleia da República, à luz dos conhecimentos médicos atuais, conseguir objetivar e dar “densidade legislativa” a esta norma.

Contudo, gostaria de comentar um aspeto importante do acórdão: o conceito de “sofrimento intolerável”. O sofrimento intolerável, particularmente o sofrimento psíquico, é amplamente subjetivo, avaliado principalmente pelo próprio (autoavaliação), e não é suscetível de ser mensurado por terceiros (heteroavaliação) de forma rigorosa e objetiva. Uma lei que na prática autoriza um “suicídio medicamente assistido” não pode assentar em condições vagas e imprecisas. O TC, ao considerar o sofrimento intolerável, determinado de acordo com as regras próprias da profissão médica, como um critério válido de acesso à eutanásia, quando este não pode ser mensurável de forma inequívoca e universal pela medicina, acaba por desproteger totalmente o dever de proteção da vida humana.

Numa sociedade moderna e compassiva, o caráter “intolerável” do sofrimento é um conceito incompatível com a boa prática médica. A medicina dispõe atualmente de um arsenal terapêutico diverso e eficaz para tratar quer a dor física, através de analgésicos e outras técnicas, quer o sofrimento psíquico, através dos antidepressivos e de tratamentos psicológicos.

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Convém também referir que o sofrimento não é estático, varia com o tempo, sofrendo influência de vários fatores. Por isso é que muitos doentes terminais que pensam na eutanásia como uma possibilidade mudam de ideias, após obterem os cuidados paliativos adequados. Neste contexto, como é que o legislador resolveria a seguinte questão: não poderia a pessoa vir a arrepender-se mais tarde, como se arrependem a maior parte dos que tentam o suicídio? A decisão de suprimir uma vida é a mais absolutamente irreversível de qualquer das decisões, não é possível voltar atrás.

É totalmente incompreensível que, numa altura pandémica em que existe um enorme esforço coletivo e são feitos vários sacríficos com o objetivo de salvar vidas, a AR se apresse a legislar sobre a eutanásia. Os deputados deveriam estar preocupados em resolver as condições, absolutamente miseráveis e degradantes, em que vivem milhares de idosos nos lares espalhados pelo país e promover melhores cuidados de saúde para todos.

Não houve nenhuma associação de doentes que pedisse a lei da eutanásia, os pareceres éticos solicitados e várias ordens profissionais manifestaram-se contra esta lei, pelo que não se percebe esta autêntica obsessão legislativa.  Os deputados deveriam estabelecer mais empatia com o sofrimento da população, evitar a demagogia da utilização de casos extremos e raros, e promover verdadeiras soluções para os mais frágeis. É prioritário o investimento no SNS, criando uma rede nacional de cuidados paliativos. O sofrimento intolerável só existirá se o Estado o permitir.