Às vezes, vale a pena voltar atrás no tempo para pensar os dias de hoje. Não para mostrar que lá tudo já estava em germe, contendo em si o princípio de um desenvolvimento necessário, mas para descobrir, mais modestamente, a coerência entre o passado e o presente, tão mais fácil de se obter quando o passado é um passado relativamente próximo de nós. O artigo de hoje é dedicado a esse exercício.
O nosso século começou, para efeitos práticos, com o 11 de Setembro de 2001. Quer dizer: com a demonstração plena e inteira da barbárie islamista. É claro que a barbárie vinha de trás e muita gente, sobretudo depois do apelo à morte de Salman Rushdie, em 1989, pelo Ayatollah Khomeini, sob a acusação de blasfémia contra o Islão, foi sensível à evidência da incompatibilidade dos modos de viver islamista e ocidental, algo que saltava aos olhos. É claro que o saber-se isso não diminuiu em nada a surpresa pelo ataque bem sucedido a Nova Iorque e ao Pentágono e falhado, graças ao heroísmo dos passageiros do avião, à Casa Branca. Em contrapartida, já não houve surpresa alguma – apenas choque – com os ataques de Londres, Madrid, ou qualquer um que tenha tido lugar nos tempos consecutivos. Dos que ocorrem hoje em dia – particularmente em França, que se revelou um alvo muito apetecível para o islamismo – o melhor é nem falar: até porque, de facto, tirando um caso ou outro, praticamente já não se fala deles. Tornaram-se numa coisa normal. Nem choque provocam, quanto mais surpresa.
Dois comentários merecem ser feitos. Primeiro, e contrariamente à lenda, a reacção nos países ocidentais ao 11 de Setembro não foi a de um horror unânime. Os festejos não se limitaram à célebre “rua árabe”, houve festejos também por essa Europa fora e por gente que de árabe não tinha nada. Contava neles sobretudo o velho ódio aos Estados Unidos e, indirectamente, o mais recente, mas muito bem consolidado, ódio a Israel. Sobretudo, as declarações de solidariedade com os Estados Unidos – género “Somos todos americanos”, um género horrendo que conheceu indesmentível fortuna – traziam já em si, mais ou menos subreptícia, uma lista muito extensa de cláusulas e cláusulasinhas que só aumentaram com o tempo. Aconselho quem tenha dúvidas na matéria a ir ler o que se escrevia na altura.
Em segundo lugar, veio à tona, com grande intensidade, um ódio a si mesmo do Ocidente, que se declina de várias maneiras que, por simplicidade, podemos reunir numa só: o Ocidente é, por definição, opressivo e culpado, em contraste com a inocência radical dos povos com que, ao longo dos tempos, entrou em contacto. Esta visão das coisas dá voz a um hipercriticismo que corresponde a uma perversão da tradição crítica ocidental que se inicia com os Gregos. E tal hipercriticismo, que se afasta decisivamente de uma concepção do progresso do melhor viver que partilhavam, cada uma a seu modo, a esquerda e a direita, conduz directamente ao suicídio ideológico das nossas sociedades. Que esse suicídio venha trajado com as belas vestes do respeito pelas diferenças e pelo outro não muda nada no que respeita ao seu letal efeito. Porque o respeito pelo outro, que a tradição crítica sempre fomentou, só é valioso se for acompanhado pelo respeito por nós mesmos. De facto, o respeito pelo outro, se é alguma coisa, é uma manifestação essencial do respeito por nós mesmos. Só nos respeitamos a nós mesmos respeitando o outro. Aquilo a que o suicídio ideológico do hipercriticismo nos conduz é à pura e simples falta de respeito, explícita por relação a nós mesmos e implícita por relação ao outro.
O pós-11 de Setembro, no interior do qual vivemos, só acentuou este estado de coisas. Olhe-se para onde se olhar, vemos o suicídio ideológico em acção. Todos os problemas, reais ou imaginários, são vistos como prova conclusiva da nossa culpa original e originária. Uma parte substancial da vastíssima literatura sobre as “alterações climáticas”, por exemplo, preocupa-se muito menos com a discussão dos problemas complexos que a questão coloca – tão mais complexos quanto os seus contornos são muito mais imprecisos do que normalmente se pretende – do que com a exposição dos malefícios da cultura ocidental, seja sob a forma da crítica do capitalismo, seja sob o modo de uma denúncia da arrogância subentendida pelo nosso modo de viver.
A chamada “cultura do cancelamento” é um outro exemplo. Tudo o que surja, por mais vagamente que seja, como algo que possa ferir o quase divinizado outro deve imperativamente ser silenciado. O outro é divinizado no presente e no passado, como uma entidade que foi objecto dos nossos cruéis rituais sacrificiais. Mais uma vez é esquecido o esforço secular da tradição crítica ocidental na exposição da injustiça e da crueldade. De facto, essa própria tradição é vista como uma forma particularmente subtil e insidiosa de perpetuar a opressão. A tese do chamado “racismo sistémico” vai exactamente nesse sentido. É o passado como um todo que deve ser abolido, já que ele não exprime senão opressão. Não há criação nossa no passado, ou, melhor: o que passa por criação – política, artística, científica – não é, se exceptuarmos aquela que é atribuída ao outro (diferentemente definido segundo as circunstâncias e o momentâneo interesse), senão um artifício gerado pela opressão. Obviamente, a abolição do passado é uma condição indispensável para o cancelamento de tudo o que, no presente, não obedeça ao princípio da divinização do outro. O passado, desde que não concebido como uma totalidade maciça de opressão, corre o risco de ameaçar as nossas certezas e de relativizar as nossas crenças. Isto é: de nos fazer hesitar perante o suicídio ideológico.
Não pretendo que a divinização do outro e aquilo que chamei “suicídio ideológico” se tenham iniciado com o pós-11 de Setembro. Digo apenas que recebeu daí um extraordinário ímpeto e que o processo assim engendrado se multiplicou em todas as direcções, sem que se possa conceber qualquer princípio de auto-limitação nesse sistema de pensamento. O ridículo e o grotesco infiltraram as nossas crenças do dia-a-dia. E, mesmo que se procure vesti-las com vagas referências à tradição de auto-determinação e de liberdade crítica que, por mais penosas que tenham sido a sua aquisição e a sua defesa, são fundadoras da nossa cultura, qualquer tentativa de estabelecer uma continuidade entre essa tradição e o momento presente esbarra contra evidências brutas e indisputáveis. Uma atitude está nos antípodas da outra. O que está, entre outras coisas, em jogo, é a nossa liberdade de expressão, ou, talvez seja melhor dizer assim, o nosso direito ao discurso livre.
O que há de particularmente opressivo em tudo isto, que marca de forma clara o nosso presente, é o caracter praticamente compulsivo das novas crenças. Fui muito parco na lista de exemplos, que poderia prolongar quase indefinidamente, adivinhando até, sem precisar de muita imaginação, novos exemplos que, mais cedo ou mais tarde, surgirão. Mas o novo pensamento colectivo é obedientemente praticado já quase sem reflexão, como uma segunda natureza que se vai alargando a cada dia que passa. O suicídio ideológico é um processo em curso, facilitado pela ignorância e pelo sentimento de superioridade moral daqueles que, à espera da redenção, se sacrificam aos presumidos eternamente sacrificados. A quem não tenha paciência para ler livros, basta-lhe abrir um jornal ou ver televisão: está, quase infalivelmente, tudo lá, sob a forma de ordens invisíveis sobre a maneira como devemos pensar.
PS.: Depois de muitos outros, é a minha vez de elogiar Sérgio Sousa Pinto pela sua coragem em resistir às vozes de censura que, de muitos cantos, se levantaram contra ele. Pode não ser evidente, mas tem tudo a ver com a substância principal deste artigo.